O Porto de Anamaria
Humoristas costumam estereotipar a figura da sogra, com suas piadas maldosas. O nome é também explorado no linguajar popular: doce olho-de-sogra (originalmente olho-de-cobra), brinquedo língua-de-sogra (além de linguarudo, tem um som estridente), etc. Super protetora, possessiva, intrusa na vida do casal... são várias as figurações.
Quase sempre, caricaturando a sogra do genro, “pobre vítima” dessa intromissão! Leitor, lembra de Fred Flintstone, sempre brigando com a mãe de Wilma? E da mãe da personagem “Feiticeira”, naquela famosa série de TV? Mas há também a sogra da nora. Bem representada pela história mitológica de Afrodite, Deusa do amor. Que enciumada com a paixão do filho Eros pela belíssima Psiqué, encomenda sua morte. Malsucedida, terminou aceitando a união do casal. Não sem antes impor vários sofrimentos à nora, incluindo as peripécias invejosas e “gulosas” das irmãs de Psiqué, diante da grande beleza de Eros. Mas essa é outra (complexa) conversa!
Amigo, só conheço esse estereótipo pela literatura, filmes e outras mídias sociais. Que minha sogra, recentemente encantada nos braços do Divino, era uma mulher especial. Costumava dizer que gostaria de ter nascido homem, numa época em que imperava a submissão feminina. Rebeldia típica da politizada D. Anamaria, que em 1945, aos 12 anos de idade, escondida – para desespero do pai Domingos Azevedo, rico e conservador empresário – foi ao famoso comício na pracinha do Diário, que culminou com o assassinato de Demócrito de Souza Filho.
Não há testemunho melhor de sua personalidade que os depoimentos, em vários meios, das filhas, netos(as), sobrinhos(as), parentes e amigos. Numa sutil dicotomia, ao mesmo tempo desapegada de bens materiais e elegante; decidida e emotiva; firme (alguns preferem o termo braba!) e gentil; ativista em prol dos mais necessitados e refinada foram algumas das descrições.
Essa mulher, que até os últimos momentos da vida não abria mão de sua autonomia e veemente poder de decisão, era igualmente carinhosa. Bem, sem dúvida no plano espiritual, que no físico, ela, tanto quanto eu – como a entendia! – tinha uma certa trava. Ah, o toque na pele! Gesto tão simples... e tão difícil. Mas compensava essa e outras pequenas imperfeições com grandeza e desprendimento.
Se eu tivesse que descrevê-la por apenas uma dessas atitudes, a palavra seria “perdão”. Que às vezes, de tão difícil de entender, levava meu falecido cunhado Rominho a chamá-la, espirituosamente, de Madre Tereza de Calcutá! Magnânima no perdoar, também sabia lançar mão de sua humildade para pedir perdão, se magoava alguém. Como nas reclamações sobre o consumo de bebidas nas famosas domingueiras da sua casa. Ah, como ela agregava a família!
Nesses domingos, geralmente me pedia que preparasse um drinque para ela: um gin tônica ou uma caipifruta. Mais para relaxar que pelo prazer gustativo. E após uma taça de vinho branco na refeição, fechava o dia com um cálice de vinho do Porto. Esse sim, ela degustava. Que marca? Que tipo? Sua modéstia não comportava essa exigência. Era aquele disponível na hora, que nós a presenteávamos. Haverei de me lembrar dessa grande sogra sempre que beber um Porto. Que certamente dedicarei a ela. Começando agora, com um cálice de Noval 40 anos. Tim, tim, brinde à vida. Enquanto a morte não chega.