Auge da pandemia aprofunda cisão entre governadores e Bolsonaro
Com o aprofundamento da crise sanitária, e o sufocamento de praticamente todos os estados, impactados pela escassez de leitos de UTI para pacientes infectados com a Covid-19, a cisão entre o presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido), e os governadores - que jamais havia sido sanada - voltou a se intensificar. Na prática, com uma semana de recordes de óbitos ocasionados pelo vírus, e em meio à dificuldades como a ausência de coordenação nacional em protocolos para o enfrentamento da pandemia, a falta de celeridade na viabilização das vacinas, e da lentidão para a definição de mais uma fase de auxílio emergencial para a população, os governadores se veem diante de mais uma disputa de narrativa, aos moldes do que ocorreu há cerca de um ano, com o presidente Bolsonaro buscando se afastar do ônus político de uma crise de proporções gigantescas.
Alguns estados têm adotado medidas de isolamento social em busca de viabilizar a diminuição dos contágios gerados pela pandemia e fugir - ou adiar - do cada vez mais próximo colapso nacional da Saúde. Em contrapartida, o presidente faz questão de evidenciar que está em um caminho oposto ao dos governadores. Sistematicamente faz críticas ao lockdown, como na quinta-feira passada, quando disse que é preciso ter “coragem” para enfrentar a pandemia e parar de “frescura” e “mimimi”. Ou no dia anterior, quando afirmou que a política do “fique em casa” fará “o pessoal” morrer de fome e de depressão, uma vez que eles não terão como sustentar as suas famílias.
A vacina é outro ponto de discordância. Por meio de carta endereçada ao presidente, 19 governadores, entre eles o governador de Pernambuco, Paulo Câmara (PSB), cobraram que Jair Bolsonaro adote medidas imediatas e procure organismos internacionais para adquirir mais doses de vacinas, argumentando que a vacinação é a única forma de "deter a pandemia". Os Entes Federados têm envidado todos os seus esforços, mas estão no limite de suas forças e possibilidades”, diz um trecho da carta. A postura do presidente em torno da vacinação é dúbia. Na última quinta ele, primeiro afirmou que não havia onde comprar vacinas, dizendo que “idiotas” pediam para que ele adquirisse os imunizando. Na ocasião, o presidente afirmou que iria comprar as vacinas "na casa da tua mãe". Já à noite, em live transmitida em suas redes sociais, Bolsonaro garantiu que chegarão 60 milhões de doses ao País, entre este mês e o final de abril.
Durante a semana, a atuação conjunta dos governadores contra o presidente também ocorreu quando os gestores estaduais questionaram uma postagem do presidente com dados que, segundo os governadores, estavam distorcidos, pois transformavam repasses obrigatórios pela Constituição Federal como parte do que o governo Bolsonaro havia repassado aos estados, em 2020, para o combate à pandemia. Os governadores do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB) e o da Bahia, Rui Costa (PT), inclusive, acionaram o Supremo Tribunal Federal (STF) pedindo que a postagem fosse apagada.
Outros governadores também se manifestaram individualmente de forma dura contra o presidente. Ao longo da semana, o governador de São Paulo, João Dória (PSDB), afirmou que o Bolsonaro é um "cara louco", uma "tragédia para o brasil" é "uma vergonha mundial". Já o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), frisou que o presidente "está matando a sua própria gente".
Apesar de buscarem acuar o presidente, na opinião do cientista político e professor da Universidade Católica de Pernambuco, Antônio Lucena, os "governadores batem cabeça" neste momento. Eles estão sendo sugados pelo atraso da vacinação, que posterga a retomada econômica, e ficam presos no discurso de Bolsonaro, que busca transferir a responsabilidade aos estados do impacto econômico negativo que as medidas restritivas podem gerar. "Bolsonaro posa como quem defende a atividade econômica, mas o grande problema é a pandemia. Se a pandemia não é controlada, não há retomada econômica. E o Governo Federal não fez o dever de casa de comprar vacinas. Agora, estamos na 'xepa' da vacina", afirma Lucena.
Ele interpreta que o presidente “mantém mais ou menos” o discurso adotado em março de 2020, se colocando contra as medidas de isolamento como forma de se eximir de responsabilidade. “Na verdade, o ideal seria um lockdown nacional, como ocorreu em outros países. Quando ele é isolado, os problemas políticos e econômicos ficam restritos àquela localidade, a população se insurge contra os governadores. Quando é nacional, o Governo Federal assumiria o ônus e ele ficaria diluído”, aponta Lucena.
Risco iminente
No entendimento da cientista política Priscila Lapa, professora da Faculdade de Ciências Humanas de Olinda (Facho), 2021 traz mudanças que podem tornar o impacto dos planos do presidente diferente do planejado por ele. “Em 2020, havia o medo do desconhecido, a lógica da insegurança, de não se saber o que estava por vir. Em 2021, especialistas em saúde pública já diziam que a situação pioraria, especialistas em economia diziam que as medidas de apoio à economia deveria ser mantidas. As pessoas estão mais cansadas, há caminhos e saídas, mas não houve escolha política. Está um ambiente tensionado, o que torna mais difícil fazer política”, frisa Priscila.
Antônio Lucena e Priscila Lapa, sublinham que, caso a tendência de momento, endossada por especialistas em saúde permaneça e colapsos, como o ocorrido em Manaus (AM) no mês de janeiro, se repitam, a estratégia do presidente, pode falhar. "Neste cenário, ficaria mais claro para a população que a crise foi gerada por inabilidade do Governo Federal em agir", pontua Lucena.
Esse é, atualmente, um grande risco para o esvaziamento do discurso adotado pelo presidente da República. "O que ocorreu em Manaus já foi suficiente para mobilizar a opinião pública. Algo como aquilo, acontecendo em vários estados, terá um peso de realidade que vai contra qualquer discurso. Essa fórmula dele de colar na pauta econômica e colocar no colo dos governadores a saúde pública, ela vai sendo esvaziada à medida que a pandemia vai ficando fora do controle. Com as pessoas tendo a sensação de risco iminente, de alastramento da doença, esse discurso de Bolsonaro vai sendo minado. O discurso de negacionismo vai ficando isolado”, enfatiza Priscila Lapa. .
Mais uma vez
Como forma de tentar dar vazão à sua narrativa, ao longo da semana, criou-se expectativa por um pronunciamento em cadeia de rádio e televisão do presidente Bolsonaro. A fala de Bolsonaro à nação ocorreria, inicialmente, na última terça-feira, porém foi adiada para a quarta-feira. Especulou-se que ele faria o pronunciamento ontem, mas houve desistência do presidente novamente. A expectativa, agora, é de que ele grave um pronunciamento aos brasileiros neste final de semana. A ideia dos assessores do presidente é evitar a mobilização que já ocorreu durante a semana, com panelaços em várias cidades brasileiras no horário em que estavam previstas as suas falas. O presidente foi instruído ainda a restringir a exposição das suas palavras às redes sociais, sem necessidade de cadeia nacional de rádio e televisão, também como forma de minimizar a articulação de movimentos contrários à sua gestão.