A autonomia médica e a judicialização da saúde
A autonomia médica e a relação entre médico e paciente têm sido temas centrais no debate sobre a saúde no Brasil, especialmente em relação à concessão de medicamentos não incorporados pelo Sistema Único de Saúde (SUS). O Supremo Tribunal Federal (STF) iniciou o julgamento, no Plenário Virtual, em 06/09/2024, do tema 1234, que se refere , em resumo, às responsabilidades da União, estados e municípios nas demandas de saúde. Busca o julgamento mostrar a necessidade do equilíbrio entre a autonomia médica e os critérios técnicos e administrativos estabelecidos pelo poder público em matéria de direito à saúde.
Tradicionalmente, a autonomia do médico permite que ele prescreva tratamentos que julgar necessários para a saúde do paciente, levando em conta seu conhecimento técnico e a singularidade de cada caso. O Código de Ética Médica (CEM), em sua versão atual, trata amplamente da questão da autonomia do ato médico e do respeito à autonomia do paciente. A autonomia médica, definida como a liberdade técnica e científica que o médico tem para realizar seu trabalho, é garantida pelo código, mas sempre dentro de limites éticos, técnicos e legais. O artigo 31 do CEM estabelece que o médico tem liberdade para tomar decisões no interesse do paciente, desde que essas decisões estejam baseadas em seu julgamento profissional, no conhecimento científico disponível e nas circunstâncias do caso.
No entanto, o CEM também traz limites à autonomia médica, reconhecendo que o médico deve respeitar as diretrizes éticas e as regulamentações vigentes, como as políticas públicas de saúde, incluindo as normas do Sistema Único de Saúde (SUS). O artigo 21 do Código de Ética Médica menciona que é vedado ao médico desrespeitar a legislação vigente sobre saúde pública, o que significa que sua autonomia não pode ser exercida de maneira isolada, desconsiderando as normas coletivas e administrativas que regulam o acesso a tratamentos e medicamentos.
A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) mencionada na minuta de voto de 06/09/2024 reforça essa interpretação, ao estipular que o Judiciário deve considerar não apenas a prescrição médica, mas também os pareceres técnicos de órgãos como o NATJUS e a análise do ato administrativo que envolva a não incorporação de determinado medicamento. Essa postura está alinhada ao próprio Código de Ética Médica, que em seu artigo 32 proíbe o médico de prometer resultados ou atuar de forma a criar falsas expectativas, especialmente em casos que envolvem tratamentos experimentais ou não regulamentados pelas políticas públicas.
Além disso, as normas éticas enfatizam a autonomia do paciente como um aspecto fundamental da relação médico-paciente. O médico deve respeitar o direito do paciente de participar das decisões sobre seu tratamento e tem o dever de informar e respeitar as escolhas do paciente, mesmo quando discordar delas, salvo em situações de emergência ou risco iminente de vida.
Portanto, a autonomia não é ilimitada, especialmente quando envolve medicamentos e tratamentos não incorporados nas políticas públicas de saúde, como é o caso dos medicamentos não disponibilizados pelo SUS. A decisão do STF destaca a necessidade de uma análise mais profunda e criteriosa desses pedidos, com base em parâmetros técnicos e administrativos.
Ao estabelecer que o Poder Judiciário, ao julgar pedidos de medicamentos não incorporados, deve analisar o ato administrativo de incorporação (ou sua ausência) com base nas circunstâncias do caso concreto, a decisão coloca uma barreira importante à mera prescrição médica como justificativa para a concessão judicial de medicamentos. Isso ocorre porque a decisão determina que, além da prescrição médica, é essencial a consulta ao Núcleo de Apoio Técnico do Poder Judiciário (NATJUS) ou a outros especialistas na área, garantindo uma análise técnica mais ampla e objetiva.
Esse ponto levanta questões sobre o papel da autonomia médica. Enquanto o médico é o responsável pela saúde do paciente, essa decisão estabelece que a mera prescrição médica não é suficiente para justificar a concessão de medicamentos fora das políticas públicas, exigindo uma análise mais ampla que considere a viabilidade técnica e econômica, além da política pública vigente. A decisão judicial, ao interferir na concessão de medicamentos, deve equilibrar o respeito à autonomia médica com a responsabilidade do Estado em manter um sistema de saúde sustentável e equilibrado.
O voto relator também estabelece que, no caso de deferimento judicial do fármaco, os órgãos competentes devem ser oficiados para avaliar a possibilidade de incorporação do medicamento no SUS. Essa diretriz tem o potencial de impactar as futuras decisões sobre incorporação de medicamentos, reforçando a necessidade de uma constante atualização da lista de medicamentos fornecidos pelo SUS, com base nas necessidades reais da população e na viabilidade econômica.
Por fim, a decisão traz uma mudança significativa ao exigir que o ato administrativo de não incorporação do medicamento seja analisado à luz da legislação vigente, sem que o Judiciário invada o mérito técnico-administrativo. Isso preserva a separação entre os papéis das diferentes esferas de poder, respeitando a competência técnica dos órgãos como a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec) e, ao mesmo tempo, garantindo que as decisões judiciais sejam fundamentadas em uma análise ampla e especializada.
Na prática, o que se pretende é que a autonomia seja exercida em consonância com as regulamentações de saúde pública, especialmente no que diz respeito à concessão de medicamentos e tratamentos fora da lista oficial do SUS. Ao determinar que os pedidos judiciais de medicamentos não incorporados ao SUS devem passar por uma análise técnica e administrativa, além de considerar o parecer de especialistas, o STF reafirma a necessidade de equilíbrio entre a liberdade técnica do médico e a responsabilidade coletiva do sistema de saúde.
O caminho perfilhado pelo STF corrobora a importância de decisões judiciais bem fundamentadas, com base em análises técnicas que vão além da simples prescrição, e sempre buscando o bem-estar do paciente dentro das limitações do sistema de saúde público. Entretanto, sem dúvida, não se pode desprezar o direito à saúde do paciente que não pode estar alheio à revolução biotecnológica, no sentido de ter acesso ao que a melhor medicina vem oferecendo para garantir a vida, a saúde e própria dignidade humana.