A judicialização do TEA (Transtorno do Espectro Autista)
A judicialização do tratamento do Transtorno do Espectro Autista (TEA) nos âmbitos da saúde pública e suplementar no Brasil tem se intensificado, refletindo a busca das famílias por acesso a terapias adequadas.
Entretanto, é importante ressaltar que as decisões judiciais precisam estar fundamentadas na Medicina Baseada em Evidências (MBE), garantindo que as intervenções prescritas sejam eficazes e seguras. A MBE integra as melhores evidências científicas disponíveis com a experiência clínica e as preferências dos pacientes, promovendo tratamentos mais assertivos. No contexto do TEA, diversas terapias possuem respaldo científico, como:
• Análise do Comportamento Aplicada (ABA): metodologia que utiliza princípios comportamentais para promover habilidades sociais e comunicativas.
• Método TEACCH: abordagem estruturada que visa desenvolver a autonomia do indivíduo com autismo.
• Intervenções baseadas em comunicação alternativa, como o PECS (Picture Exchange Communication System): sistema que utiliza figuras para facilitar a comunicação.
Além dessas, terapias como fonoaudiologia, terapia ocupacional e intervenções psicopedagógicas também demonstram benefícios significativos para pessoas com TEA.
Nas demandas contra planos de saúde, há frequentes alegações de falta de profissionais capacitados na rede credenciada para atender às necessidades dos pacientes com TEA. Essa insuficiência leva os beneficiários a pleitearem judicialmente tratamentos fora da rede contratada, com profissionais particulares, o que impacta negativamente o equilíbrio financeiro dos contratos. A judicialização desse tipo de demanda tem resultado em decisões que impõem o custeio de tratamentos fora da rede, desestabilizando o setor.
Situação semelhante ocorre no Sistema Único de Saúde (SUS), onde a indisponibilidade de terapias especializadas faz com que juízes determinem bloqueios judiciais de verbas para garantir os tratamentos solicitados. Essas decisões, embora fundamentais para atender às necessidades individuais, geram pressão sobre o orçamento público e desequilíbrio na gestão de recursos destinados à saúde.
Por outro lado, a prescrição inadequada de terapias com cargas horárias desproporcionais ou sem evidências robustas pode ser prejudicial. Associações que representam pessoas com transtorno do espectro autista (TEA) pediram ao Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania providências contra uma prática disseminada no setor privado de saúde, pela qual o paciente passa muitas horas por dia em clínicas, sem que tenha retornos no desenvolvimento. As associações dizem, ainda, que a prática de submeter pessoas autistas a longas jornadas terapêuticas, muitas vezes excedendo 40 horas semanais, caracteriza uma “forma moderna de regime manicomial”. Embora não envolva confinamento físico, como nos antigos manicômios, essa imposição de horas excessivas de terapia exerce um controle desproporcional sobre a vida desses indivíduos”, diz Guilherme de Almeida, presidente da Associação Nacional Para Inclusão das Pessoas Autistas (Autistas Brasil). O alvo principal da denúncia é a Análise do Comportamento Aplicada (Aba), técnica amplamente disseminada como o tratamento mais eficaz para crianças autistas.
“Essa abordagem é comumente justificada sob o argumento de que uma maior quantidade de horas de intervenção terapêutica resulta em melhores resultados de desenvolvimento. Contudo, tal justificativa não leva em consideração as necessidades individuais, o direito à autodeterminação e a dignidade da pessoa autista, forçando-a a adequar-se a comportamentos e expectativas neurotípicas”, diz Almeida.
As associações criticam a falta de regulamentação no setor e a ampla disseminação do Aba como um “tratamento para os autistas”, o que abre caminho para que a indústria da saúde ganhe dinheiro com essa terapia. “Hoje muitas vezes fazem um curso de duas semanas e começam a vender como produto”, diz.
Dessa forma, as terapias podem gerar desgaste físico, emocional e social e violar os princípios bioética da beneficência e não maleficência, pois ao invés de tratar o paciente, esse tipo de prática pode gerar mais danos.
Diante desse cenário, é imprescindível que os pais assumam um papel ativo e responsável na busca por profissionais sérios e capacitados que prescrevam tratamentos baseados em evidências científicas e personalizados para as necessidades de cada criança. Essa atitude pode evitar abusos, como prescrições desnecessárias ou com cargas horárias excessivas, protegendo as crianças de tratamentos inadequados e contribuindo para a sustentabilidade do sistema de saúde.
Importante pontuar que o Judiciário tem sido protagonista no que tange à garantia dos tratamentos. Como exemplo, cita-se o julgamento do Incidente de Assunção de Competência (IAC) nº 0018952-81.2019.8.17.9000, em 26 de julho de 2022, pela Seção Cível do TJPE que estabeleceu nove teses jurídicas que obrigam os planos de saúde a custear tratamentos multidisciplinares para pessoas com TEA, tais como terapias como ABA, PECS, TEACCH, entre outras.
No âmbito do STJ, também existem várias decisões que garantem terapias para o TEA, sem limitação de sessões.
Entretanto, diante do surgimento de novas modalidades de terapias sem comprovação científica, a batalha judicial vem se acirrando. De um lado, os planos afirmam que para determinadas condições, existem procedimentos eficazes, efetivos e seguros já incorporados ao rol da ANS. Portanto, não haveria necessidade de custear terapias não listadas, uma vez que alternativas adequadas já estão disponíveis. Argumentam que a obrigatoriedade de custear tratamentos não previstos no rol da ANS ou nos contratos pode afetar o equilíbrio financeiro dos planos de saúde, resultando em aumentos nos custos operacionais e, consequentemente, nos valores das mensalidades para os beneficiários.
Essas alegações buscam limitar a obrigatoriedade de cobertura às terapias expressamente previstas no rol da ANS e nos contratos, visando preservar a sustentabilidade financeira das operadoras de planos de saúde. Contudo, o STJ tem considerado, em situações excepcionais, a possibilidade de cobertura de tratamentos não listados, desde que atendam a critérios específicos, como a inexistência de substituto terapêutico no rol e a comprovação de eficácia baseada em evidências científicas e abusiva a recusa de cobertura nesses casos.
Diante desse cenário nebuloso, do que é terapia adequada e do que deve ser coberto, a 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça vai estabelecer tese vinculante para orientar os tribunais sobre a possibilidade de um plano de saúde limitar ou recusar a cobertura de terapia multidisciplinar para pacientes com transtorno global do desenvolvimento (TGD). Até que a tese seja fixada, ficam suspensos os recursos especiais e agravos em REsp no STJ. Os processos nas instâncias ordinárias seguem normalmente. Os casos tratam do custeio de terapias multidisciplinares por métodos como ABA e Bobath, que envolvem fonoaudiologia, psicologia, musicoterapia, equoterapia e integração sensorial e que são os mais prescritos para os portadores do transtorno do espectro autista. A questão jurídica afetada foi a seguinte: Possibilidade ou não de o plano de saúde limitar ou recusar a cobertura de terapia multidisciplinar prescrita ao paciente com transtorno global do desenvolvimento. (REsp 2.153.672 e REsp 2.167.050 )
No mesmo sentido, visando dirimir as dúvidas que ainda perduram sobre questão, em 12 de novembro de 2024, o TJPE, por meio da Vice-Presidência, determinou o sobrestamento de todos os processos que tratam do custeio de terapias multidisciplinares para TEA, aguardando uniformização de entendimento pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Essa medida visa garantir coerência nas decisões judiciais, evitando divergências interpretativas.
Portanto, o Judiciário busca uniformizar o entendimento em âmbito nacional, reconhecendo a importância de consolidar jurisprudências que assegurem o direito ao tratamento adequado para pessoas com TEA. Essas iniciativas refletem o compromisso do Judiciário brasileiro em harmonizar as decisões relacionadas ao tratamento do autismo, promovendo maior segurança jurídica e efetividade nos direitos dessas pessoas.
Em suma, a judicialização do tratamento do autismo no Brasil evidencia a necessidade de decisões judiciais fundamentadas em evidências científicas, assegurando que as terapias prescritas sejam eficazes e acessíveis, tanto no sistema público quanto no suplementar. A atuação conjunta de todos os atores envolvidos no direito da saúde é fundamental para garantir a uniformidade e a justiça nas decisões relacionadas ao tratamento de pessoas com TEA
A Medicina Baseada em Evidências deve ser o alicerce dessas decisões, garantindo que as intervenções prescritas sejam baseadas em evidências e eficazes. Ao mesmo tempo, é essencial que pais e profissionais de saúde ajam com responsabilidade para evitar abusos e proteger os direitos das crianças, sem comprometer os recursos destinados à saúde de forma ampla. A atuação coordenada do Judiciário será decisiva para enfrentar esses desafios e promover a justiça no acesso ao tratamento e a proteção dos vulneráveis, assegurando-lhes o direito à saúde.