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Cirurgia sem sangue: é possível?

Foto: Freepik

Em visita recente ao Instituto de Cirurgia Sem Sangue - Centro Oeste Paulista, que tem sede em Bariri, São Paulo, o Dr. Daniel Molinar e sua equipe de profissionais de saúde e do Direito,  a advogada Dr. Juliana Vaccarelli, assim como membros da Comitê de Ligação com Hospitais (COLIH), uma organização criada pelas Testemunhas de Jeová para atuar como intermediária entre os membros da religião e os hospitais nos mostrou uma possibilidade ainda bem desconhecida do público em geral: a  de realização de cirurgias sem transfusão de sangue. 

O instituto é uma instituição que tem promovido ativamente essa prática no Brasil, utilizando as tecnologias mais avançadas para garantir a segurança dos pacientes que optam por cirurgias sem transfusão de sangue. Além de realizar cirurgias, o instituto também investe na capacitação de profissionais de saúde e na conscientização sobre as alternativas à transfusão, com apoio da COLIH que divulga informações para as equipes médicas sobre alternativas aos procedimentos que envolvem transfusões de sangue.

O trabalho desenvolvido pelo instituto é crucial para atender pacientes que, por razões religiosas ou de saúde, optam por evitar transfusões. Ele representa um modelo que poderia ser expandido para outras regiões do país, para garantir a autonomia dos pacientes. 

A cirurgia sem sangue é uma prática médica que oferece uma alternativa viável à transfusão de sangue alogênico (de doadores) em procedimentos cirúrgicos, o que é especialmente importante para grupos como as Testemunhas de Jeová, que recusam o uso de sangue por razões religiosas. Além das questões éticas e religiosas, muitos pacientes buscam evitar os riscos associados às transfusões de sangue, como reações imunológicas e infecções. No Brasil, o Supremo Tribunal Federal (STF) se debruçou sobre o tema, consolidando uma importante tese jurídica que reforça a autonomia do paciente.

•    Tese do STF sobre a Recusa de Transfusão de Sangue e sua implementação

No julgamento do RE 1.172.152/SP, envolvendo Testemunhas de Jeová, o STF firmou a seguinte tese:

"A recusa de submissão a tratamento médico, por motivo de convicção religiosa, não afasta a responsabilidade civil do médico ou do hospital em assegurar ao paciente alternativas eficazes e seguras para o tratamento de sua condição de saúde, sempre preservando, em primeiro lugar, a vida, salvo em situações excepcionais, que autorizem a limitação de sua autonomia em favor da proteção de outros bens jurídicos constitucionalmente tutelados."
 

Essa tese estabelece que, mesmo diante da recusa de transfusões de sangue, os médicos e hospitais devem oferecer alternativas eficazes e seguras, como a cirurgia sem sangue, quando possível. A autonomia do paciente é um princípio fundamental, mas pode ser limitada em casos excepcionais, como em situações de risco iminente à vida.

Com o objetivo de implementar a decisão, o Estado de São Paulo, através do gabinete do Secretário de Saúde, instituiu, pela Resolução SS-224, de 19 de setembro de 2024, uma comissão interdisciplinar para estudar a viabilidade da implementação de cirurgias sem sangue no sistema público de saúde, um passo importante para consolidar essa prática no estado.

A missão da comissão é justamente estudar as melhores práticas, protocolos, e os aspectos éticos e jurídicos relacionados à realização de cirurgias sem sangue. O objetivo principal é avaliar a viabilidade da implementação de procedimentos sem transfusão em hospitais públicos do estado e garantir que os pacientes que optam por essa prática tenham suas escolhas respeitadas, alinhando as necessidades técnicas, legais e financeiras.

A comissão interdisciplinar é composta por inúmeros participantes tais como: 

1.    Representantes do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (CREMESP): Responsáveis por fornecer orientação sobre os limites éticos e as melhores práticas médicas no que diz respeito à autonomia do paciente e à recusa de transfusões.

2.    Médicos Especialistas em Cirurgias Complexas: Profissionais experientes nas áreas de cirurgia cardíaca, ortopédica e outras especialidades que envolvem perda significativa de sangue, encarregados de desenvolver protocolos médicos para realizar procedimentos seguros sem o uso de sangue.

3.    Representantes de Hospitais Públicos e Privados: Participantes que trazem a perspectiva da infraestrutura hospitalar e logística, avaliando a capacidade dos hospitais de adotar tecnologias como a máquina de recuperação celular (Cell Saver) e outros dispositivos necessários para realizar cirurgias sem sangue.

4.    Especialistas em Bioética: Responsáveis por discutir as implicações éticas da recusa de transfusões e pela garantia do respeito à autonomia do paciente dentro dos limites estabelecidos pela lei.

5.    Advogados e Juristas: Especialistas em direito médico que orientam a comissão sobre as normas legais vigentes, incluindo a aplicação das decisões do STF sobre o direito de recusa de tratamentos médicos e a legislação relacionada ao Código de Ética Médica.

6.    Representantes de Grupos Religiosos e Pacientes: Para garantir que as vozes de pacientes, como os membros das Testemunhas de Jeová, sejam ouvidas, o comitê inclui representantes de grupos religiosos e associações de pacientes que buscam alternativas à transfusão de sangue.

7.    Economistas da Saúde: Responsáveis por avaliar os custos associados à implementação dessas técnicas no sistema público de saúde, estimando o impacto financeiro de introduzir as tecnologias e capacitar profissionais para a realização de cirurgias sem sangue.

Essa interdisciplinariedade garante assegura que o tema seja tratado com a profundidade e o rigor necessários, garantindo não só a viabilidade técnica e financeira, mas também o respeito aos princípios éticos e à autonomia dos pacientes.

•    Riscos das Transfusões de Sangue

Embora as transfusões de sangue sejam amplamente usadas para salvar vidas, elas não são isentas de riscos. Alguns dos principais perigos incluem:

1.    Infecções: Embora a triagem seja rigorosa, ainda existe o risco de transmissão de doenças, como HIV e hepatite. O recente caso no Rio de Janeiro, onde seis pacientes transplantados foram contaminados com HIV, destaca as falhas que ainda podem ocorrer.

2.    Reações Imunológicas: Pacientes podem desenvolver reações adversas graves ao sangue transfundido, como reações hemolíticas, em que o corpo ataca as células sanguíneas transfundidas, levando a complicações como falência renal.

3.    Lesão Pulmonar Aguda Associada à Transfusão (TRALI): Embora rara, essa complicação grave pode resultar em inflamação pulmonar aguda e insuficiência respiratória.

•    Como é Feita a Cirurgia Sem Sangue
A cirurgia sem sangue utiliza métodos e tecnologias avançadas para minimizar a perda de sangue durante a operação, garantindo a segurança do paciente sem a necessidade de transfusão de sangue de doadores. Algumas das principais técnicas incluem:

1.    Bisturi Harmônico ou de Plasma: Esses dispositivos cortam e cauterizam os vasos sanguíneos simultaneamente, reduzindo a perda de sangue durante a cirurgia.

2.    Máquina de Recuperação de Células Sanguíneas (Cell Saver): Coleta o sangue perdido durante o procedimento, filtra-o e devolve-o ao paciente, permitindo a reutilização de seu próprio sangue.

3.    Medicamentos Hemostáticos: Medicamentos como a eritropoetina e agentes coagulantes são administrados para estimular a produção de glóbulos vermelhos e reduzir o sangramento.

Essas técnicas podem ser usadas em uma variedade de procedimentos cirúrgicos, como cirurgias cardíacas, ortopédicas e abdominais, onde tradicionalmente há um risco elevado de perda de sangue.

•    Dificuldades na Realização de Cirurgia Sem Sangue

Apesar das vantagens e da crescente demanda por cirurgias sem sangue, existem várias dificuldades que impedem sua ampla implementação:

1.    Falta de Profissionais Habilitados: Muitas faculdades de medicina ainda não oferecem formação adequada em técnicas de cirurgia sem sangue. A maioria dos profissionais não é capacitada para usar tecnologias como o bisturi harmônico ou a máquina de recuperação de células, o que limita as opções disponíveis para os pacientes.

2.    Custo mais Elevado: O custo de uma cirurgia sem sangue pode ser entre 20% e 30% mais alto do que uma cirurgia convencional, principalmente devido ao uso de equipamentos especializados e medicamentos hemostáticos. A necessidade de investir em tecnologia e capacitação também encarece o procedimento.

3.    Infraestrutura Deficiente: Muitos hospitais, especialmente no setor público, não têm a infraestrutura necessária para realizar cirurgias sem sangue de forma eficiente e segura. Isso inclui a falta de equipamentos como o Cell Saver, o que pode impedir que essa opção seja oferecida a todos os pacientes que a desejam.

Assim, o custo total mais elevado, o uso de tecnologia avançada como bisturis harmônicos e máquinas de recuperação de células (Cell Saver) e de medicamentos com agentes que promovem a coagulação e aumentam a produção de glóbulos vermelhos, como a eritropoietina são fatores que tem servido como entraves à implementação da cirurgia, mas que precisam ser vencidos para assegurar a autonomia do paciente. 

Autonomia no Direito Médico: Possibilidade de Escolha vs. Recusa Terapêutica
No direito médico, a autonomia do paciente é fundamental, garantindo que cada indivíduo tenha o direito de decidir sobre seu próprio tratamento, desde que esteja plenamente informado dos riscos e das opções disponíveis. No caso das cirurgias sem sangue, o princípio da possibilidade de escolha é respeitado quando os médicos oferecem alternativas eficazes que atendem às convicções religiosas ou pessoais do paciente. Isso se difere da recusa terapêutica, em que o paciente simplesmente recusa qualquer tipo de tratamento.

A cirurgia sem sangue é um exemplo de como a autonomia pode ser exercida sem que isso comprometa a saúde ou a vida do paciente, desde que as tecnologias e as técnicas adequadas estejam disponíveis. O respeito a essa autonomia é central no campo da bioética e no direito médico moderno.

Relexões
A cirurgia sem sangue é uma alternativa cada vez mais relevante para pacientes que, por razões religiosas ou de saúde, optam por evitar transfusões de sangue. No Brasil, a jurisprudência do STF reconhece e protege a autonomia dos pacientes, exigindo que os profissionais de saúde ofereçam alternativas viáveis e seguras. No entanto, a implementação dessa prática enfrenta desafios, como a falta de formação adequada de profissionais, a infraestrutura insuficiente em muitos hospitais e os custos mais elevados.

O trabalho do Instituto de Cirurgia Sem Sangue e de profissionais como o Dr. Daniel Molinar demonstra que é possível realizar cirurgias seguras e eficazes sem o uso de sangue alogênico, oferecendo aos pacientes a possibilidade de exercer plenamente sua autonomia. No entanto, para que essa opção esteja disponível de maneira mais ampla, é necessário investir em capacitação médica, tecnologia e políticas públicas que apoiem essas iniciativas, caso contrário a decisão do STF não será hábil, por si só, ae assegurar a autonomia dos pacientes. 

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