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Direito à saúde e liberdade religiosa: o caso das Testemunhas de Jeová

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Sabe-se que, no Brasil, o direito à saúde está constitucionalmente garantido como um direito fundamental, bem como a liberdade de autocuidado. Assim, em regra, ninguém é obrigado a se submeter a tratamento médico com o qual não concorde, desde que seja capaz de entender as consequências de sua recusa e possa decidir livremente. Indaga-se quando essa motivação se baseia em crença religiosa? Como deve proceder o médico para cumprir o seu código de ética que tem como pressuposto básico tratar o paciente?

É o caso da recusa de transfusões de sangue por parte das Testemunhas de Jeová, que representa um conflito central entre os direitos fundamentais de autonomia, saúde, vida e liberdade de crença. A objeção a esses procedimentos médicos baseia-se em convicções religiosas, onde as Testemunhas de Jeová interpretam certas passagens bíblicas como uma proibição absoluta do consumo ou uso de sangue, o que inclui transfusões. Para elas, aceitar uma transfusão seria uma violação direta de sua fé, comprometendo sua relação espiritual com Deus, impactando no próprio sentido de dignidade humana. 

O Código de Ética Médica do Brasil estabelece diretrizes claras sobre o que os médicos devem fazer em situações onde há recusa de tratamento, como a transfusão de sangue, com base na autonomia do paciente ou na vontade dos pais de um menor. No entanto, o Código também determina que a preservação da vida e da saúde do paciente deve ser prioritária, especialmente em situações de emergência.

Em casos de emergência, quando há risco iminente de morte ou dano grave à saúde do paciente, o Código de Ética Médica permite que o médico intervenha mesmo sem o consentimento do paciente ou de seus responsáveis legais. A ideia central é a proteção da vida, conforme indicado no art. 24 do Código:
 

Art. 24: "É permitido ao médico, em situações de emergência, quando não for possível obter o consentimento livre e esclarecido do paciente ou de seu responsável legal, adotar medidas indispensáveis para salvar a vida ou preservar a saúde do paciente."

Esse artigo reconhece que, em emergências, a preservação da vida se sobrepõe à autonomia e à liberdade de crença, especialmente quando o paciente está incapacitado de tomar uma decisão informada, como no caso de menores de idade ou adultos em situações críticas.

Quando se trata de um adulto capaz, o médico deve respeitar a autonomia do paciente, conforme preconiza o art. 22 do Código de Ética Médica, que estabelece o direito ao consentimento livre e esclarecido. Em situações eletivas, ou seja, onde não há emergência, o médico não pode forçar um tratamento, incluindo transfusões de sangue, contra a vontade do paciente, desde que este tenha plena capacidade de decisão e compreenda os riscos envolvidos.

Art. 22: "É direito do paciente decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente perigo de vida."

Em emergências, no entanto, se o adulto estiver inconsciente ou incapaz de fornecer consentimento, o médico está autorizado a realizar procedimentos que sejam considerados necessários para salvar a vida do paciente, independentemente de crenças religiosas prévias ou instruções anteriores, se estas não puderem ser verificadas de forma clara e imediata.

No caso de incapazes, incluindo menores de idade, o Código de Ética Médica também permite que o médico atue em situações de emergência sem o consentimento dos pais ou responsáveis, sempre que houver risco de vida. 

O entendimento na seara da ética médica é que, em casos de emergência, a preservação da vida prevalece sobre a autonomia dos responsáveis. Em situações não emergenciais, o médico deve buscar a via judicial para obter uma decisão que permita ou impeça o procedimento, respeitando a legislação vigente.

Apesar da regulamentação ética existente, os conflitos nem sempre tem sido resolvidos sob essa perspectiva, gerando insegurança para os profissionais de saúde. Por isso, o tema tem sido amplamente debatido nos tribunais, com diferenças quando o paciente é adulto, capaz ou menor de idade. Recentemente, o Tribunal de Justiça de São Paulo determinou que o hospital indenizasse os pais de uma criança Testemunha de Jeová que recebeu uma transfusão de sangue contra a sua vontade. Nesse caso, os médicos argumentaram que a vida da criança estava em risco imediato, e a intervenção foi realizada sem o consentimento dos pais. O Tribunal reconheceu a violação da autonomia dos pais e de sua liberdade de crença, resultando na condenação ao pagamento de indenização por danos morais

No contexto internacional, vários casos semelhantes já foram julgados. No Reino Unido, por exemplo, em 2012, entendeu-se que médicos poderiam administrar transfusões de sangue em uma criança Testemunha de Jeová, independentemente da objeção dos pais, considerando o melhor interesse da criança.

Em Portugal, uma decisão de 2017 afirmou o direito de um adulto Testemunha de Jeová de recusar uma transfusão de sangue, com base na autonomia individual. No entanto, nos casos que envolvem menores, o tribunal favoreceu a proteção da vida.

Na França e na Espanha, decisões judiciais seguiram uma lógica similar, com os tribunais protegendo a autonomia dos adultos, mas intervindo em casos que envolvem menores de idade para garantir a preservação da vida.

Nos Estados Unidos, o princípio de "emergência médica" tem sido utilizado para justificar a realização de transfusões em crianças Testemunhas de Jeová, mesmo contra a vontade dos pais, com base na doutrina do melhor interesse da criança. Já os casos envolvendo adultos são tratados com maior deferência à autonomia, desde que a decisão seja informada e consciente.

Diante da ausência de consenso nos tribunais brasileiros, o Supremo Tribunal Federal (STF) começou a analisar o Tema 1069 - Direito de autodeterminação das testemunhas de Jeová de submeterem-se a tratamento médico realizado sem transfusão de sangue, em razão da sua consciência religiosa, no qual se discute se as testemunhas de Jeová podem recusar transfusão de sangue em tratamentos realizados pelo Sistema Único da Saúde (SUS). A Corte também decidirá se o Estado deve custear tratamento alternativo que não utilize a transfusão de sangue. 

Dois recursos motivam o julgamento da questão. O primeiro envolve o caso de uma mulher que se recusou a conceder autorização para transfusão de sangue durante cirurgia cardíaca na Santa Casa de Misericórdia de Maceió. Diante da negativa, o hospital não realizou o procedimento. No segundo caso, um homem, que tem a mesma crença, pediu que a Justiça determine ao SUS o custeio de uma cirurgia ortopédica sem transfusão e cobertura de todos os gastos com o tratamento. 

O tema revela a complexidade de conciliar direitos fundamentais em situações que envolvem decisões médicas e crenças religiosas. A jurisprudência nacional e internacional tende a proteger a autonomia individual dos adultos, mas adota uma postura mais paternalista quando a vida de menores está em jogo. Os tribunais têm, geralmente, considerado o melhor interesse da criança, privilegiando a vida e a saúde sobre a liberdade de crença dos pais em situações de risco imediato.

Além dos desafios legais e éticos que envolvem a recusa de transfusões de sangue por parte das Testemunhas de Jeová, a medicina tem avançado significativamente no desenvolvimento de alternativas que respeitam as crenças religiosas dessa comunidade, desenvolvendo técnicas e produtos médicos conhecidos como "estratégias de gestão do sangue do paciente", tais como uso de substitutos de sangue, autotransfusão intraoperatória, conservação de sangue, produtos coagulantes e selantes cirúrgicos  e outras. Esses avanços ajudam a minimizar ou até mesmo eliminar a necessidade de transfusões de sangue em cirurgias e tratamentos complexos. Na prática clínica, médicos têm se empenhado em respeitar as diretrizes religiosas desses pacientes, buscando alternativas que conciliem a ciência médica com as convicções religiosas.

A busca por alternativas às transfusões tradicionais representa um avanço significativo no tratamento de pacientes Testemunhas de Jeová, permitindo que eles recebam cuidados de saúde de alta qualidade sem violar seus princípios religiosos. Esse desenvolvimento, aliado à evolução da jurisprudência que tenta equilibrar os direitos fundamentais de autonomia, vida, saúde e liberdade de crença, demonstra que a ciência e o direito podem encontrar soluções harmoniosas em contextos de grande sensibilidade moral e ética, respeitando a dignidade humana. 


 

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