Embriões híbridos: a ciência pode tudo?
O Japão tornou-se o primeiro país a autorizar, através do Ministério da Educação, Cultura, Esporte, Ciência e Tecnologia (MEXT) do país, o desenvolvimento completo de embriões híbridos de humanos e animais, visando a criação de órgãos humanos para transplante.
O pesquisador Hiromitsu Nakauchi, da Universidade de Tóquio, lidera este projeto, que envolve o cultivo de células-tronco humanas em embriões de camundongos, ratos e porcos, com posterior transplante desses embriões em animais hospedeiros. A técnica consiste em introduzir células-tronco humanas pluripotentes em embriões de animais nos quais genes específicos foram desativados para impedir o desenvolvimento de determinados órgãos, como o pâncreas. As células humanas, então, preenchem essa lacuna, direcionando o crescimento do órgão ausente. O embrião híbrido resultante contém células de ambas as espécies. O objetivo é que esses embriões híbridos desenvolvam órgãos humanos que possam ser utilizados em transplantes futuros.
Antes disso, tais experimentos eram permitidos apenas até um estágio inicial de desenvolvimento, sendo obrigatório o descarte dos embriões antes de completarem 14 dias.
Com essas mudanças regulatórias, o Japão assumiu um papel pioneiro em pesquisas que visam criar órgãos humanos para transplantes, ao mesmo tempo que enfrenta debates éticos e bioéticos significativos.
Essa mistura de células de diferentes origens genéticas, é chamada de quimera, termo que tem origem na mitologia grega, onde designava uma criatura fantástica composta por partes de diferentes animais, frequentemente representada como uma figura híbrida com cabeça de leão, corpo de cabra e cauda de serpente. Na mitologia, a quimera simbolizava um ser aterrorizante e impossível, evocando mistério e poder.
A ideia de quimeras sempre provocou fascínio e temor. No imaginário popular, são frequentemente associadas a criaturas grotescas ou a cenários de ficção científica.
Na biotecnologia moderna, o conceito de quimera evoluiu para descrever organismos criados em laboratório com o propósito de pesquisa. Esses organismos combinam células de diferentes espécies para estudar funções biológicas, modelar doenças humanas ou desenvolver órgãos para transplante. Contudo, práticas como a criação de quimeras humano-animais levantam questões éticas sobre a definição de humanidade, o respeito à dignidade da vida e os limites da intervenção científica.
Diversos tratados e convenções internacionais abordam a manipulação genética e a pesquisa com embriões humanos:
• Convenção de Oviedo (1997): Promovida pelo Conselho da Europa, estabelece que a criação de embriões humanos para fins de pesquisa é proibida e que a constituição de embriões híbridos é contrária à dignidade humana.
• Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos (1997): Adotada pela UNESCO, afirma que práticas contrárias à dignidade humana, como a clonagem reprodutiva de seres humanos, não devem ser permitidas.
• Protocolo Adicional à Convenção de Oviedo sobre a Proibição da Clonagem de Seres Humanos (1998): Reforça a proibição da clonagem humana, incluindo a criação de embriões híbridos.
Sem dúvida, o avanço em biotecnologias, tais como a técnica CRISPR-Cas9 para edição genética, o desenvolvimento de mini cérebros em laboratório e a impressão 3D de tecidos e órgãos humanos demonstram impactos transformadores na forma como tratamos doenças e promovemos a saúde. No entanto, o progresso científico deve ser acompanhado de uma análise ética rigorosa para garantir que esses avanços respeitem princípios fundamentais da dignidade humana.
Kant, em sua filosofia, destacou que o ser humano deve ser tratado sempre como um fim em si mesmo e nunca como um meio para um fim. Esse princípio é especialmente relevante na bioética contemporânea, pois alerta para o perigo de instrumentalizar a vida humana em nome do progresso científico. A criação de embriões híbridos de humanos e animais, por exemplo, suscita o questionamento sobre até que ponto a vida humana, ainda que em estágio embrionário, está sendo tratada como uma ferramenta para atender a finalidades médicas. Ela também desafia vários princípios bioéticos fundamentais:
• Respeito à Dignidade Humana: A manipulação de embriões que combinam material genético humano e animal pode ser vista como uma violação da dignidade inerente ao ser humano.
• Não Maleficência: Há preocupações sobre possíveis sofrimentos infligidos aos animais envolvidos e os riscos de consequências imprevistas, como a humanização de características animais.
• Justiça: A distribuição equitativa dos benefícios resultantes dessa pesquisa deve ser considerada, garantindo que os avanços não beneficiem apenas uma parcela da população.
Portanto, o uso de embriões híbridos para criar órgãos, embora promissor, pode levar à instrumentalização de formas de vida, reduzindo-as a meros objetos de pesquisa. Tal prática poderia abrir precedentes preocupantes para outras áreas da biotecnologia, em que a dignidade do ser humano seja secundarizada em prol de avanços científicos. Esse risco demanda regulamentações robustas e um debate ético contínuo para evitar que os limites éticos sejam ultrapassados, exigindo que as normas sejam constantemente revisadas e adaptadas, considerando os novos desafios éticos.
Embora o avanço científico seja essencial para o progresso da medicina e o alívio do sofrimento humano, é imperativo que tais progressos respeitem os valores fundamentais da vida e da dignidade humana. É necessário que a comunidade científica, juntamente com a sociedade, estabeleça limites claros para garantir que a busca pelo conhecimento e inovação não comprometa os princípios bioéticos que sustentam nossa humanidade.