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Preconceito e discriminação por questões de saúde

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Instituído pela UNESCO, em 19 de outubro celebra-se o dia mundial da bioética. Essa data visa promover reflexões e ações sobre a importância da bioética para garantir um cuidado igualitário e respeitoso, bem como para reforçar os direitos humanos no campo da saúde. A bioética, disciplina que analisa questões éticas, jurídicas e sociais associadas à saúde e ao avanço das ciências biomédicas, busca orientar práticas que respeitem a dignidade humana, a liberdade e a justiça, assegurando que o cuidado em saúde não se limite ao conhecimento técnico, mas seja pautado por valores éticos e inclusivos. Em 2024, o tema escolhido para reflexão é não estigmatização e não discriminação por razões de saúde. 

Embora muitas vezes não se perceba, a discriminação em razão de condições de saúde tem impacto devastador na vida das pessoas e pode ocorrer de várias formas e em diversas esferas. Como exemplo podem ser citados condições de saúde específicas, como câncer, HIV ou doenças mentais, obesidade, condições de gênero, idade, orientação sexual, entre outros aspectos.  Configura-se desde o atendimento clínico até o momento de celebração de contratos de seguro de vida e planos de saúde. 

Pessoas com condições crônicas ou debilitantes, como doenças autoimunes, ou que enfrentam problemas de saúde mental, muitas vezes são estigmatizadas, tendo seu direito a um tratamento justo e digno ameaçado. Além disso, o etarismo — preconceito contra pessoas idosas — é um tipo de discriminação que afeta significativamente o acesso e a qualidade dos serviços de saúde para essa população.

No caso da obesidade, pacientes frequentemente enfrentam julgamentos preconceituosos em ambientes de saúde, que associam a condição exclusivamente a hábitos inadequados ou falta de cuidado pessoal, o que pode levar a diagnósticos incompletos, atendimento apressado e, em algumas situações, até à recusa de tratamentos adequados. Esses pacientes, muitas vezes, não recebem uma avaliação ampla, desconsiderando fatores genéticos e metabólicos, e são sujeitos a discriminação que impacta negativamente sua saúde física e emocional. 

Já as vítimas de violência doméstica enfrentam desafios específicos, incluindo o receio de expor a situação a profissionais de saúde por medo de estigmatização e julgamentos, além de, em alguns casos, serem vistas de maneira reducionista como “pacientes problemáticas” em vez de indivíduos necessitados de apoio integral. A discriminação nesses casos reforça barreiras ao acesso a tratamentos adequados e ao suporte emocional, sendo necessário um enfoque bioético e inclusivo que respeite e acolha essas condições com sensibilidade e sem julgamentos. 

Vale destacar que pacientes podem enfrentar exclusões ou restrições nas coberturas oferecidas por seguros ou enfrentar dificuldades de empregabilidade em razão de condições de saúde que constam em seus históricos médicos. 

A proteção jurídica contra a discriminação em saúde é essencial e conta com suporte em diversas leis e regulamentações. A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 196, estabelece que "a saúde é direito de todos e dever do Estado", assegurando que cada pessoa tenha acesso a serviços de saúde sem discriminação. 

No contexto do trabalho, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e o Código de Defesa do Consumidor estabelecem normas para que doenças não sirvam de motivo para demissões discriminatórias ou recusa de acesso a bens e serviços, como seguros e financiamentos. A norma trabalhista assegura que práticas discriminatórias, incluindo aquelas motivadas por condições de saúde, são proibidas no ambiente de trabalho. 

Já no setor de planos de saúde, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) regulamenta a não discriminação nas coberturas oferecidas pelas operadoras, impedindo restrições de acesso aos serviços de saúde com base em condições pré-existentes ou características pessoais.

Para fortalecer o combate à discriminação e garantir o sigilo sobre condições de saúde específicas, o Brasil possui leis fundamentais voltadas à proteção de pessoas vivendo com algumas doenças como AIDS, hanseníase, tuberculose, assim como para a proteção e inclusão de pessoas com doenças mentais, incluindo autismo, e outras condições de saúde.

A Lei n.º 12.984/2014, conhecida como Lei Antidiscriminação para Pessoas com HIV, tipifica como crime discriminar pessoas portadoras de HIV e/ou AIDS, em diferentes contextos, incluindo o trabalho, a educação e o acesso aos serviços de saúde. De acordo com essa legislação, práticas como negar emprego, segregar ou excluir pessoas com HIV constituem infrações penais, podendo levar a penalidades. Essa lei visa garantir que pessoas soropositivas tenham seus direitos respeitados sem sofrerem discriminação ou exclusão.

Além disso, a Portaria n.º 1.823/2012 do Ministério da Saúde institui a Política Nacional de Saúde Integral para as Pessoas com HIV/AIDS, assegurando sigilo absoluto sobre o diagnóstico em todos os serviços de saúde e no ambiente de trabalho. A confidencialidade dos dados de saúde é reforçada pela Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que considera informações de saúde como dados sensíveis, estabelecendo o direito ao sigilo e à privacidade.

Para pessoas com transtornos mentais, a Lei n.º 10.216/2001, conhecida como a Lei da Reforma Psiquiátrica, estabelece os direitos dessas pessoas, incluindo o direito ao tratamento humanizado, ao convívio familiar e a não discriminação. Essa lei ainda orienta para a proteção e reintegração social de pessoas com doenças mentais, promovendo a dignidade e combatendo o estigma associado a esses transtornos.

A Lei n.º 12.764/2012, chamada de Lei Berenice Piana, institui a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista (TEA). Esta lei garante o acesso igualitário à saúde, educação, trabalho e outras áreas, considerando que pessoas com autismo têm o direito a um atendimento livre de discriminação e com a devida adequação às suas necessidades. A Lei n.º 13.146/2015, o Estatuto da Pessoa com Deficiência, também se aplica, assegurando direitos fundamentais e combatendo práticas discriminatórias no atendimento em saúde.

A proteção à saúde de vítimas de violência doméstica é reforçada pela Lei n.º 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha. Esta legislação não só estabelece medidas para proteger mulheres contra a violência doméstica e familiar, mas também assegura atendimento integral à saúde dessas vítimas, incluindo apoio psicológico e físico em redes de atendimento específicas. A lei promove uma abordagem multidisciplinar para que as vítimas recebam o cuidado necessário, inclusive com prioridade em serviços de saúde e assistência social, visando garantir que o impacto da violência seja tratado de forma abrangente.

Já em relação à proteção contra a gordofobia, a Lei n.º 14.457/2022, conhecida como Lei de Combate à Gordofobia, estabelece diretrizes para o combate à discriminação de pessoas obesas, tanto em ambientes de saúde quanto em outros contextos sociais e profissionais. A lei visa assegurar que pessoas com obesidade sejam tratadas sem preconceitos, recebendo o atendimento de saúde adequado e livre de julgamentos. Essa proteção combate a estigmatização e garante que o diagnóstico e o tratamento em saúde sejam realizados com respeito, considerando as necessidades individuais e sem discriminação associada à condição física.

Em relação ao gênero, vale citar a Política Nacional de Saúde Integral da População LGBT, instituída pela Portaria n.º 2.836/2011 do Ministério da Saúde, que  estabelece diretrizes para garantir o acesso integral e humanizado da população LGBT, incluindo pessoas trans, no Sistema Único de Saúde (SUS). Ela orienta que o atendimento respeite a identidade de gênero, reconhecendo o nome social e promovendo um acolhimento que considere as necessidades específicas de saúde dessa população. Além disso, desde 2008, o SUS oferece serviços especializados para a população trans, incluindo acompanhamento psicológico, tratamento hormonal e cirurgias de redesignação sexual. Esses serviços estão regulamentados pela Portaria n.º 2.803/2013, que garante o direito a procedimentos de transição de gênero para aqueles que desejarem, em centros de referência com equipes multidisciplinares que incluem psicólogos, endocrinologistas, entre outros profissionais.

A Lei n.º 9.656/1998, que regula os planos de saúde, foi modificada ao longo dos anos para proibir a exclusão de cobertura para condições pré-existentes e para assegurar que condições  como câncer e outras condições graves recebam a devida cobertura. A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) fiscaliza o cumprimento das normas para garantir a não discriminação dos beneficiários.

Portanto, todo esse arcabouço legislativo objetiva proteger o indivíduo da estigmatização e discriminação em razão de condições de saúde.  

Além disso, a proteção de dados sensíveis  de saúde é crucial para evitar práticas discriminatórias, pois permite que informações de saúde sejam tratadas com o sigilo necessário, impedindo o uso inadequado dessas informações por empregadores, empresas de seguro e outros setores que possam restringir o acesso a direitos básicos. 

Um caso emblemático ocorrido no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) envolve a questão do uso inadequado de dados de saúde, destacando a proteção legal da privacidade de informações sensíveis. Nesse caso, um pai pediu a guarda dos filhos após ter tido acesso a informações de saúde da mãe das crianças. O acesso a esses dados foi obtido sem o consentimento da mãe e posteriormente utilizado para questionar a capacidade dela de cuidar dos filhos, o que configura uma violação da privacidade e do sigilo dos dados de saúde dela.

O tribunal decidiu que o uso de dados de saúde sem consentimento para fundamentar um pedido de guarda era indevido, enfatizando a necessidade de proteção da privacidade dos dados sensíveis. Esta decisão reforça a aplicação da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que considera dados de saúde como dados sensíveis e exige que eles sejam tratados com alto nível de confidencialidade e apenas com o consentimento do titular.

A decisão nesse caso serve como importante precedente, salientando que informações de saúde, não devem ser utilizadas para fins de disputa judicial sem consentimento e de forma discriminatória, pois a exposição indevida dessas informações pode acarretar estigmatização e discriminação. Por isso, é importante que em demandas judiciais seja garantido o sigilo médico de documentos como relatórios e prontuários dos envolvidos. 

A saúde, sendo um direito universal, deve ser protegida e promovida para todos. A bioética, ao reforçar princípios como a justiça, a dignidade e o respeito à autonomia, é uma ferramenta indispensável para consolidar a ideia de saúde como um direito fundamental. Ela direciona políticas públicas, regulações e a atuação dos profissionais da saúde para que cada pessoa seja tratada com a mesma dignidade, independentemente de suas condições de saúde ou características pessoais, garantindo que a busca pelo bem-estar individual e coletivo seja pautada pelo respeito e pela justiça social. O preconceito mata e na saúde, mais ainda. 


 

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