A lacuna do abandono
“Quem vai querer uma menina de 17?”
Certo (ou errado) dia, eu estava num abrigo, desses que acolhem crianças abandonadas. Minha mente estava longe e dispersa, observando o movimento daquelas crianças e tentando adivinhar algumas de suas histórias. Cada uma tinha a sua e, até então, eu não conhecia nenhuma delas. Uns eram menores, outros maiores. Uns tinham irmãos, outros não. Uns ainda tinham sorrisos nos rostos, outros não. Mas todos tinham algo em comum: foram abandonados, largados e desprezados. Todos haviam chegado ali com uma “medida de proteção” e estavam em busca de sobrevivência.
Como toda criança, tinham sonhos, medos, fantasias e desejos. E esperavam por um futuro. Mas, naquele momento, seus futuros haviam sido sequestrados. E eles estavam sem rumo, entregues à própria sorte.
Todo aquele filme me atormentava, até que um grito me tirou da inércia: “Tia, socorro! Maria está enforcando Igor!” E eu corri para acudir. Igor era um menino de uns 8 anos e a “agressora”, Maria, devia ter uns 10. Enquanto eu tentava apartar, chegou a cuidadora e, prontamente, colocou Maria de castigo, olhando para a parede, enquanto eu tentava acolher Igor, que esperneava dizendo que a irmã tinha tentado lhe matar.
Mas só foi a moça se afastar para Maria começar a xingar o irmão, mesmo de longe, e gritar pela irmã mais nova, Antônia, que rapidamente foi detida pela cuidadora. Enquanto Gerusa, a funcionária, tentava esticar os cabelos crespos de Antônia, ela me contava um pouco da história daquelas crianças. Era um grupo de quatro irmãos. A mais nova tinha 4 anos e a mais velha, 17. Eles viviam na casa há 3 anos, desde que a pequena tinha um aninho. Já estavam aptos para adoção, mas isso ainda não havia acontecido, pois não queriam separar os irmãos, que eram muito unidos (apesar do “enforcamento”). Afinal, era a única referência familiar que lhes restava.
Mas chegou um momento em que não dava mais. Ou eles seriam separados, ou não seriam adotados, pois era difícil achar alguém que quisesse adotar os quatro. Naquela semana, Antônia estava indo embora e Maria estava muito agressiva e ansiosa. Maria e Igor também já estavam com pretendentes, mas iam ficar em casas separadas.
— E a mais velha? — eu perguntei.
— Ah, aí já é mais difícil, né tia? — respondeu a cuidadora, que também tinha o hábito, igual às crianças, de chamar todos de tia e tio. — Quem vai querer uma menina de 17?
E acabei meu dia pensando nessa frase: “Quem vai querer uma menina de 17?”.
Por Gabriela Sampaio Dias - Jornalista.
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