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A chaga da escravidão (8ª parte)

Receita tradicional brasileira surgiu da mistura de povos - Da editoria de Arte

A alimentação nas casas-grandes, sempre variada e generosa, era bem diferente daquela das senzalas. Cozinheiras negras preparavam as refeições de patrões e se serviam dos restos. Em cozinhas, construídas pelos portugueses, embaixo de “puxados”, que imitavam quase integralmente as dos índios. Meio sem querer, é certo, posto que o clima tropical impedia o uso dos equipamentos trazidos do reino.

Naquele espaço se misturavam experiências, técnicas, sentimentos e receitas das três culturas. Utensílios, também. Dos portugueses - alguidares, almofarizes, caldeirões, chaminés francesas, fogões de chapa de ferro com três bocas, fornos abobadados, fumeiros, formas de bolo, potes, tachos pesados de cobre. Dos índios - trempes, jiraus, urupemas, pilões, cuias e cabaças.

E dos africanos - colheres de pau, gamelas de madeira, tigelas, quengos e raladores de coco. Todos os ingredientes eram novos, para aquelas escravas. Os nativos da terra - mandioca, milho, batata-doce, amendoim, castanha de caju e frutas (abacaxi, abacate, abio, caju, goiaba, pacova). E os que vinham de Portugal - sal, açúcar, pimenta-do-reino, trigo, acelga, agrião, alface, berinjela, cenoura, chicória, espinafre, hortelã e frutas (laranja, limão, lima, melão, mamão, maçã, figo, pera).

 Com os portugueses aprenderam uma maneira diferente de preparar as carnes. Primeiro temperadas, para que tomassem gosto, mistura de vinho ou vinagre mais ervas (coentro, cebolinho, alho, cebola). Depois, cozidas, assadas ou “fritas” - postas diretamente no fogo junto com gordura animal, óleo vegetal (oliva) ou manteiga. Essa gordura, na África, era usada apenas para untar o corpo ou amaciar o cabelo.

E aprenderam também, com os portugueses, a misturar, em uma mesma panela, carnes e legumes. Assim nasceu a feijoada. Em fins do séc. XVIII, início do séc. XIX. Sem consenso em relação a como nasceu. A versão mais difundida, e provavelmente equivocada, sustenta que os senhores nos engenhos davam aos escravos restos dos porcos - língua, orelha, pé, rabo.

O prato teria vindo, pois, do cozimento desses ingredientes, misturados com feijão e água. Mas essa versão romanceada das relações entre patrões e escravos não se baseia em nenhuma fonte documental. E não encontra amparo nos fatos. Que os escravos, como nossos índios, nunca tiveram o hábito de cozinhar alimentos misturados na mesma panela - feijão era só feijão, batata só batata, carne só carne, milho só milho.

Sem contar que o feijão dos escravos era servido sempre ralo, junto com farinha de mandioca ou de milho. Além disso, é bom lembrar, orelha, pés e rabos de porco nunca eram desprezados pelo colonizador; sendo, inclusive, base de muitas receitas de prestígio na Europa.

Versão mais provável é que nossa feijoada tenha mesmo nascido nas casas-grandes. A partir da adaptação de pratos tipicamente europeus, onde se preparavam cozidos de várias carnes - carneiro, ganso, pato, porco, vaca. Aos quais juntavam legumes e hortaliças, com maior ou menor variedade. Tudo fervido conjuntamente, quase sempre em panelas de barro.

Reproduzindo o mesmo jeito do cozido e da caldeirada portuguesa. A feijoada parece seguir essa tradição europeia das paneladas, mistura de leguminosas e carnes de todas as espécies. Do cozido português terá vindo, provavelmente, a ideia de misturar carnes e verduras com feijão (preto, no Sul; e mulatinho, no Nordeste), na tentativa de obter uma refeição única, com sabor e sustança. Nossa feijoada seria, assim, feliz casamento de técnica portuguesa com ingredientes nacionais.

Aos poucos, aqueles escravos foram se livrando de tabus. Passaram a se alimentar de bode, carneiro e boi - alimentos destinados, em sua terra, apenas a rituais religiosos. Também de pato e peru. O mesmo com a galinha do mato, pelos brancos conhecida como galinha-d’angola ou da-guiné. Seguidores dos cultos orixás sudaneses (candomblés da Bahia, macumbas do Rio de Janeiro, xangôs de Pernambuco) mantiveram o preconceito.

Enquanto os seguidores de Ogum, mesmo sem entusiasmo, acabaram provando dessa galinha. No começo ainda com desconfiança. E sem gostar delas. No Brasil-colônia permaneceram por muito tempo, galinha e ovo, apenas como alimento revigorante. De gente doente. Só depois passavam a frequentar todas as mesas.

(Continua no próximo sábado)
*Especialista em Gastronomia e escreve semanalmente neste espaço

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