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A chaga da escravidão (última parte)

Não seria possível explicar a cultura culinária local sem a presença dos africanos - Da editoria de Arte

Os africanos ensinaram a índios e portugueses uma nova maneira de cozinhar. Com ingredientes novos - colorau, pimenta-malagueta, jiló, quiabo, coco. Desse coco ensinaram a retirar o leite, e a misturá-lo em receitas de peixes, crustáceos, arroz, feijão e sobremesas (arroz-doce, beijo, bolos, quindim, tapioca).

Ensinaram também a usar o azeite de dendê. Passaram a “reunir elementos indígenas e portugueses, tornando-os africanos pelo batismo do dendê”, segundo Câmara Cascudo (em A cozinha africana no Brasil). Assim foram nascendo, aqui, pratos novos. Como, por exemplo:

· Caruru - caa (folha) ruru (inchada), a partir de receita indígena, feita originalmente apenas de ervas socadas com pimenta, no pilão. Com técnica africana usada no obbé, acrescentaram, a essa mistura, amendoim, azeite de dendê, camarão seco, peixe, quiabo. Guilherme Piso (1611-1678, em História Natural e médica da Índia Ocidental) faz referência ao prato - “a hera vulgar cararu que nasce nos campos e hortos parece mais uma espécie de bredo branco do que vermelho...

Come-se esse bredo com legume e cozinha-se em lugar de espinafre”. Na Bahia é tradição fazer esse prato no dia de São Cosme e São Damião (27 de setembro). Segundo a mesma tradição, antes de ir aos adultos, é servido a sete crianças, que comem com as mãos, sentadas no chão. A receita foi levada de volta para a África, em cada lugar recebendo nomes diferentes - calulu em Moçambique, Congo, Cabinda e São Tomé; funji de peixe, em Luanda (Angola); obbé na Nigéria e Daomé.

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A chaga da escravidão (1ª parte)


· Vatapá vem de ehba-tápa (pirão engrossado à maneira dos tapas). Feito inicialmente pelos negros tapas e nupês, logo foi adotado pelos iorubanos. É adaptação do muambo de galinha e do quitande de peixe, por lá feitos com farinha de arroz. Aqui, acrescentaram amendoim (ou castanha de caju), azeite de dendê, camarão fresco e seco, cebola, coentro, gengibre, leite de coco, pão amolecido, peixe, pimenta-malagueta e sal.
  
· Acarajé vem de acara-jé (pão para ser comido). Nunca frequentou mesas nobres. Seu lugar foi sempre nos tabuleiros de feira. É massa de feijão-fradinho, temperado com cebola e pimenta, frito no azeite de dendê e depois recheado com camarão frito ou vatapá.

· Quibebe remonta ao kibeba africano, lá feito com choco (tipo de molusco) ou peixe cortado, jerimum, inhame. Aqui, só com jerimum e leite de coco. Acabou virando prato típico da Semana Santa.

· Moqueca é expressão tupi que significa envolvido, embrulhado. O prato recebeu esse nome porque o peixe, enrolado em folhas, forma um pacotinho. Ainda hoje serve-se, na Bahia, uma moqueca de folhas em que esse peixe vem envolto em folhas de bananeira. Lembra um prato de Angola, o funda-riá-túmbi - pacote de ratos, assados e embrulhados em folhas.

· Farofa vem da expressão banto kuvala ofa (parir morto ou preparar frio), por ser feita com farinha de sorgo e água fria. Depois evoluiu para falofa - substituindo-se a farinha de sorgo por outra, de mandioca. Em alguns lugares, como Angola, essa “farofa é idêntica à que comemos no Brasil”, como observou Câmara Cascudo (em Made in África). Faltando lembrar que a farófia portuguesa é clara bem batida de ovo, em ponto de neve, e cozida no leite - o mesmo que ovos nevados. Sem relação, já se vê, com a nossa.

· Nasceram, também, por mãos negras, bolos, biscoitos, cremes, doces, sorvetes. Enfim, “sem escravidão não se explica o desenvolvimento, no Brasil, de uma arte de doce, de uma técnica de confeitaria, de uma estética de mesa, de sobremesa e de tabuleiro tão cheia de complicações e até sutilezas, e exigindo tanto vagar, tanto lazer, tanta demora, tanto trabalho no preparo e no enfeite dos doces, dos bolos, dos pratos, das toalhas e das mesas”, concluiu Gilberto Freyre (em Açucar).

Muitos desses escravos, com o tempo, foram alforriados. Alguns deles sobreviveram por aqui mesmo, com tabuleiros equilibrados na cabeça, vendendo comidas nas esquinas de ruas ou pátios das igrejas - abará, acaçá, acarajé, alfenim, canjica, cuscuz, mocotó, pamonha, vatapá. Mulheres quase sempre bem gordas que guardavam segredos de suas receitas.

Outros acabaram repatriados. E levaram, junto à paz de quem volta às raízes, também jeitos diferentes de fazer antigas receitas - por seus descendentes ainda hoje conhecidas como “comida de brasileiro”. Levaram mandioca - embora lá sem a importância que tem até hoje, por aqui.

Milho também, primeiro para a Guiné, onde ficou conhecido como trigo da Guiné. Dele até hoje fazem papa, pirão (xima, em Moçambique; fungi ou guindele, em Angola). Ainda caju, amendoim, goiaba, batata. Em troca, nos deixaram muito. “A escravidão ajudou a formar um Brasil mais forte em todos os campos”, definindo, entre nós, “a economia, a organização social e estrutura de classes, o Estado e o poder político, a própria cultura”, segundo Evaldo Cabral de Mello.

Influenciaram artesanato, canto, dança, festas populares, música, religião. E, sobretudo, a culinária. Com rebeldia e criatividade, fomos misturando ingredientes, temperos, sabores, técnicas e fazeres das três culturas. Transformando receitas tradicionais. Ou criando novas.

Mas sempre usando e valorizando produtos da terra. Com esses escravos aprendemos sobretudo o sabor da alegria. Que a mesa, para aquela gente, acabava sendo um momento de festa, em meio a tanta dor. Com pratos se misturando a cantos, danças e lembranças das terras distantes, batuques, crenças, zoadas, chocalhos, lamentos e saudades.

*Especialista em Gastronomia e escreve semanalmente neste espaço

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