A cozinha siciliana
No artigo passado, falamos do grande escritor italiano Andrea Camilleri, morto recentemente. Suas histórias são passadas na Sicília sua própria terra. Só para lembrar esta é a maior e mais importante ilha do Mediterrâneo. No mapa da Itália, só para lembrar, aquela bola que fica bem na ponta da bota.
Por ter importante posição geográfica (entre Europa, África e Oriente), sua história foi marcada por disputas entre muitos povos que foram deixando suas marcas - na língua, na arquitetura, em monumentos, no jeito de ser de sua gente. E também na culinária, claro.
Da sociedade original pré-helênica, os sicilianos herdaram o gosto por legumes, frutas, peixes e frutos do mar; dos gregos, vinho; dos romanos, receitas exóticas (inclusive de ganso); dos bizantinos, a preferência por pratos agridoces; dos normandos, a introdução de carnes; dos espanhóis, ingredientes que trouxeram do novo mundo - cacau, milho, peru e tomate.
Os árabes, que ocuparam essa ilha de 827 a 965, por lá deixaram alimentos muito variados: açafrão, açúcar, arroz, canela, cravo, damasco, laranja, limão, melão, noz-moscada, passas, pimenta, pistache, tangerina. Sem esquecer da ytriyah ou litria - espécie de macarrão bem fino, muito popular em receitas doces ou salgada, de onde provavelmente se originou a moderna pasta italiana.
Foi nessa região onde primeiro se cultivou o trigo, e se fez a farinha que passou a ser usada em todas as massas. Faltando só dizer que dos árabes herdaram também o sarbat - um sorvete que logo passaram a fazer com um xarope de frutas da região, mel e gelo do Monte Etna.
Antes que a Itália se tornasse (nos anos setenta do século XIX) um Estado unificado, a culinária da Sicília podia ser dividida em “jantares para ricos e comida para pobres”, segundo o folclorista siciliano Giuseppe Pitrè. “Camponeses se alimentavam basicamente de pão (com azeitona, cebola ou favas), queijos, sopas (com massa ou legumes) e peixes.
Enquanto nobres e clero se serviam de pratos sofisticados como fricassésses, fricandeau, ragout, sorvetes na forma de pêssegos, figos, laranja”, ainda segundo o mesmo autor. E tudo com muito luxo, em baixelas e taças de ouro ou prata. Assim foi servido um jantar em O Leopardo (Il Gattopardo) de Giuseppe Tomasi di Lampedusa - oferecido pelo próprio Leopardo, no seu palácio, em honra do Presidente da Câmara e da nobreza.
Nos conventos não era diferente. Em Os Vice-Reis, de Frederico de Roberto, vemos os exageros dos monges, servidos por um monzu (espécie de chef) francês, no exercício do lema “beber e comer bem, sem esquecer o prazer”.
A cozinha da Sicilia é hoje, sobretudo, mistura das tradições gastronômicas em combinação equilibrada de ingredientes, tempero e técnicas. Valorizando o sabor natural dos alimentos, com desprezo por molhos que “disfarcem” os ingredientes da terra - peixes (atum, dentão, garoupa-badejo, ferreira, sardinha, sargo, peixe-espada), frutos do mar (choco, calamaro), hortaliças, legumes e frutas.
Aos domingos, ainda se conserva o costume de reunir a família em volta de mesa farta e marcada por velhas tradições como a de preparar a própria massa e esperar a chegada dos paranze (barcos de pesca) trazendo sardinhas frescas, logo assadas em espetos. Na época do Carnaval, fazem Cannoli (com massa folhada); e, na Páscoa, empadas de carne.
Usando quase sempre os mesmos temperos: alho, anis, azeite, canela, cravo, folhas de louro, hortelã, em antológicos pratos: Arancini - bolinho de arroz com recheio de carne; Caponata - com berinjela, alcaparra, aipo, cebola e azeitona; recebendo o prato esse nome, porque era servido inicialmente nos caupone (tabernas das cidades portuárias); Maccu di San Giuseppe - purê de favas com funcho; Zucchini ao pomodoro e basilico - abóbora com tomate e manjericão; Gnocchetti di semola al sugo de maiale - massa com ragu de carne de porco; Spaghetti al Nero di seppia - com a tinta do choco; Pasta alla norma - com berinjelas; Pasta con le sarde - com sardinhas e erva-doce; Dentice al forno - dentão com cebola e caldo de carne; Sarago di porto alla brace - sargo grelhado (na grelha ou na pedra); Tonno alla palermitana - atum grelhado com anchovas; Farsumagru - bife de vitela enrolado; Cannelloni ripieni - recheado com carne e queijo caciovallo.
De sobremesa: Cannoli - canudos de massa folhada recheados de ricota fresca; Cassata siciliana - pão de ló com recheio de ricota fresca e frutas cristalizadas; Torrone di mandorle - massa de mel e amêndoa; Riso Nero - arroz doce com chocolate e amêndoas e Gelato com brioche - sorvete dentro de pão doce.
Enfim, “a Itália sem a Sicilia não deixa marcas na alma: a chave de tudo está aqui ... os frutos e legumes são deliciosos em especial a alface, tenra e saborosa como um leite, entende-se a razão porque os Antigos lhe chamaram lactuca.
O azeite, o vinho é tudo muito bom”, escreveu Goethe, em seu diário (13 de abril de 1787), no capítulo Viagem a Itália. Porque os sabores da Sicília correspondem a uma viagem no tempo, com interpretação bem própria das cozinhas de muitos povos: colorida, doce, saborosa, aromática, exótica e simples como a própria ilha.
RECEITA: PASTA CON LE SARDE
INGREDIENTES: 400g de espaguete, 4 sardinhas frescas, 250g de erva-doce (ao natural), 2 cebolas, azeite, 1 pitada de açafrão, sal, pimenta, 3 filés de anchova, 50 g de passas, 50 g de pinole
PREPARO
· Em frigideira, coloque o azeite e desfaça os filés de anchova. Junte as sardinhas e deixe cozinhar em fogo médio. Reserve
· Corte a erva doce em pedaços e cozinhe em água com sal. Escorra e guarde o líquido que veio do cozimento. Corte a cebola em pedaços e refogue no azeite. Junte uma xícara da água em que cozinhou a erva doce. Deixe levantar fervura. Junte o açafrão e mais azeite. Tempere com sal e pimenta. Reserve
· Cozinhe a massa “al dente” na água em que cozinhou a erva-doce (se necessário junte mais água). Escorra
· Em tigela, misture a massa, o molho de açafrão e as sardinhas. Por fim, decore com passas e pinole. E sirva logo
*Especialista em Gastronomia e escreve quinzenalmente neste espaço