A influência francesa em nossas mesas
Tudo começou quando a família real chegou ao Brasil, em 1808, fugindo das tropas francesas de Jean-Andoche Junot, “o filho dileto das vitórias”. Ao mar se lançaram em 8 naus, 4 fragatas, 3 brigues, 1 escuna, charruas muitas e 30 navios mercantes onde se apinhavam 15 mil homens - tantos que uma praga de piolhos obrigou quase todos a raspar suas cabeças. Inclusive Carlota Joaquina, que desceu no cais de Salvador com um exótico turbante, logo convertido em moda pela população local.
A ironia, nessa invasão determinada por Napoleão, é que toda a Corte portuguesa tentava imitar os modismos franceses. D. Maria, a Rainha Louca, chegou até a convidar Luis XV para ser padrinho do seu terceiro filho e futuro rei de Portugal, D. João VI. Sem contar que, nos tempos em que ainda tinha um resto de lucidez, contratou o grande chefe Lucas Rigaud para cuidar dos cardápios da realeza.
A culinária portuguesa mudou, com ele e alguns de seus discípulos - entre os quais José da Cruz Alvarenga, que veio a ser cozinheiro da família real no Brasil. Costumes foram aos poucos, se consolidando, primeiro no Rio de Janeiro e depois nas casas-grandes dos engenhos de açúcar. Sem educação, refinamento, nem qualquer resto de orgulho, a burguesia da época passou a copiar servilmente os hábitos franceses daquela nobreza itinerante - na etiqueta, na moda, na decoração, no uso de perfume intenso, na afetação dos gestos, na língua, na dança.
As quadrilhas (quadrille) - trocaram os palácios pelos arraiais de São João, em arrata-pés feitos de anavantús (en avant tous) e anarriêrs (en arrier). Tudo era francês. “Mudava-se até os nomes das coisas para torná-las mais finas”, assim escreveu Mario Sette em Arruar; ainda lembrando poeta que reclamava da situação, em versos:
O trenó hoje é console
Tête-à-tête é canapé
Étagères as prateleiras
Dança à noite é soirée.
Mas em nenhum outro campo essa influência foi tão forte quanto na culinária. “O francesismo invadiu todas as mesas”, reconheceu Gilberto Freyre. Passamos a organizar essa mesa com mais refinamento, usando cristais Baccarat ou São Luís, porcelanas da Companhia das Índias e prataria em geral - bandejas, bules, conchas, paliteiros, talheres, salvas. Começamos a usar o “serviço à francesa”, bem mais formal, com cada convidado sendo servido individualmente.
Quase sempre à la clochette, com sininho para chamar os serviçais. O próprio anúncio das refeições era feito em francês: “Madame, est servie” (está servido). Conhecemos também um novo horário de refeições, mais semelhante ao de hoje - reproduzindo aquele sagrado em Paris, ao tempo da Revolução Francesa, por conveniência dos deputados que participavam da Assembleia Nacional Constituinte; dado que suas sessões iam das 12:00 às 18:00, um horário nada compatível com os hábitos da época - em que a primeira refeição (o almoço) era servido bem cedo, e a segunda (o jantar) no meio do dia. Mais tarde, aos primeiros meses da República, e os brasileiros nas ruas cantariam a Marselhesa.
Nessa reprodução de hábitos franceses, aprendemos também a valorizar temperos e saladas; a preparar fondues, omeletes, souflés, molhos (bearnaise, béchamel, véloutes), sopas (bouillabaisse, onion), caldos (consommé), entradas (croquete, patê, vol-au-vent), carnes (à Chateaubriand, au poivre, à Rossine, Stroganov).
Galinha também; ao vinho (coq au vin) ou de cabidela - que, longe de ser portuguesa (como pensam muitos), é receita genuinamente francesa, a partir de técnica usada para preparar a Poulet en barbouille. Mais pães de todo tipo - baguette, croissant, brioche. E aquele da terra - duro, pesado e seco - que trocou a farinha de milho pela de trigo, ficando bem mais tenro, de miolo branco e casca dourada, já largamente usado em toda a Europa. No Brasil, e só aqui, ganhou o nome de pão francês.
Incorporamos também o hábito dos acompanhamentos junto ao prato principal - puré de batatas , dauphine, duchesse, sauté. Até a receita inglesa de batata frita, na França conhecida como pommes frites, aqui virou “fritas francesas”. Também incorporamos o hábito da sobremesa, ao final da refeição - usando chantilly, crème brullée, crepes, éclair, mousses, pavês, profiterolles, poire (pêra) belle hélène, sobert.
Sem contar que nos convertemos em grandes apreciadores de queijos e vinhos em geral. Inclusive um que Dom Pérignon (1668-1715) descobriu por acaso, na Abadia de Hautvillers, após o que convidou seus colegas monges:“Venham todos! Depressa! Venham! Estou bebendo estrelas” - um espumante logo conhecido pelo nome da própria região em que era produzido, o champagne.
Com os franceses aprendemos, ainda, a valorizar os alimentos das Américas que, levados à Europa, no início eram destinados apenas a animais e escravos - batata, cacau, milho, tomate. Só depois e aos poucos, graças a eles, recebendo o valor que merecem. Mas a esses franceses devemos também, e sobretudo, a consciência de que a mesa deve ser sempre um espaço de alegria; momento para celebrar, com os amigos, a epifania gloriosa da vida.
*É especialista em Gastronomia e escreve semanalmente neste espaço