À mesa com a máfia
Nos últimos artigos falamos sobre a Sicília - livros, hábitos, culinária. Não poderíamos deixar de referir a Máfia. Cucinare il delitto (cozinhar o crime) é expressão ainda hoje usada por lá. Não nasceu por acaso, apenas lembra velhas tradições da ilha.
É que cozinhar e organizar crimes andaram sempre juntos, ao menos com a Máfia - desde sua fundação, na própria Sicília, ainda no século XVIII. Em volta da mesa, comendo e bebendo, chefes das “famílias” impuseram a omertà (lei do silêncio), fizeram suas próprias leis e planejaram vendetta (vingança).
Refeições acabavam sendo, para aquela gente, quase uma liturgia. Com pão (simbolizando união), sal (coragem), vinho (sangue) e alho (silêncio), exerciam o que denominaram o diritto di morte - com o qual sumariamente condenavam quem queriam.
Assim fez don Genco Russo (agosto de 1958) quando ordenou a Luciano Liggio que desse fim ao chefe da família Corleone - Dottore Navarra. Partiu o pão em seis pedaços e esfregou-os no alho; ofereceu um a Liggio; os outros, aos seus quatro guarda-costas presentes, guardando o pedaço restante para ele próprio.
Todos, ao mesmo tempo, mergulharam o pão num prato cheio de sal. Dia seguinte, cumpriu-se a sentença. Essa história é contada por Jacques Kermoal, na introdução de A Máfia Senta-se à Mesa.
Não apenas em momentos assim reuniu-se, a máfia, em volta da mesa. Também para celebrar aniversários, casamentos, batizados e acordos comerciais. Mantendo sempre a tradição de servir pratos de origem camponesa - quase os mesmos dos primeiros agricultores e pastores que criaram a organização. Com fartura de legumes, vegetais, frutas, peixes e frutos do mar.
Preparados com simplicidade, e muitas vezes pelos próprios capos. É que “os chefes das famílias sabem ser também excelentes chefes de cozinha”, ainda segundo Kermoal. Honrando mais uma tradição siciliana - segundo a qual deve, o anfitrião, cozinhar para seus convidados.
Quase sempre preferem pratos únicos, de longo preparo; e ficam em volta do fogo, bebendo, à espera de que fique pronto o manjar. Entre as receitas mais conhecidas está uma Zuppa all’omertà - sopa grossa feita com ovelha velha, cebola, alho tomate, linguiça defumada, toucinho, pão, queijo, folhas de hortelã.
“Comer a ovelha cozida é descobrir um dos elementos fundamentais da Máfia”, afirma o procurador federal (de Agrigento, Sicília) Ignazio De Francisci. “Serve para entender a lógica da organização criminal, impiedosa e dura como a vida do pastor siciliano, anárquico por vocação e contrário a toda forma de lei por instinto natural”.
Banquetes eram realizados nas próprias casas dos chefões, ao ar livre ou dentro das salas. Sempre com muitos homens vigiando, para evitar a chegada de grupos rivais ou da polícia. Alguns fizeram fama, como o que ocorreu em Messina (em 1860), oferecido a Garibaldi e seus oficiais após a libertação da ilha.
No cardápio: pernil defumado da Conca d’Oro, peixe-espada agghiotta, pescada à moda de Messina, galinha da Índia estufada, perna de cabrito, borrego assado com azeite virgem, couves-flores, alcachofras e aipos cozidos a vapor, queijo de cabra, cremes, sorvetes, bolos.
Outro foi o oferecido a Frank Sinatra por Genco Russo, em sua casa de Agrigento: pasta-cicci, bollito-misto, jarrete de cordeiro, fundos de alcachofra com espinafre, queijo de cabra, marmelos no forno, flan de castanhas. Nesse dia Sinatra, seguindo o ritual mafioso, ajoelhou-se e beijou a mão de don Genco: “Baccio i mani, don Genco”.
A resposta “Alzate! Non sei rifardu!” (Levanta-te! Não és um estranho). Os fatos inspiraram Mario Puzzo no seu “O Poderoso Chefão”. Hollywood aproveita de tudo.
Restaurantes tinham também papel importante nas organizações da Máfia, para lavar dinheiro ou celebrar a morte de algum desafeto. Na sua terra ou mesmo longe dela.
Nos Estados Unidos, por exemplo, em um deles Al Capone tramou o massacre do dia de São Valentim. Em outro, Luck Luciano deu fim a Giuseppe Masseria (Joe the boss). Faltando só lembrar que Máfia vem da expressão Mia Fida (minha fé, aquilo em que creio).
Segundo o historiador siciliano Giuseppe Pitrè, a associação da palavra com a sociedade criminosa foi feita apenas em 1863, com a peça “I Mafiusi di la Vicaria” de Giuseppe Rizzotto e Gaetano Mosca - uma história que trata de gangues criminosas na prisão de Palermo.
Passando a palavra a ser usada oficialmente, com o sentido que tem hoje, em 1865, a partir de um relatório do prefeito de Palermo, Filippo Gualterio. Depois ganhou mundo e virou metáfora. Até por aqui - máfia do orçamento, do mensalão, do petrolão, dos dossiês ... e “la nave va”.
RECEITA: PESCADA À MODA DE MESSINA
INGREDIENTES
1kg de pescada branca, 1kg de batatas, 100g de aipo, 500g de tomates, 100g de azeitonas, 50g de alcaparras, 1 cebola, ½ copo de azeite
PREPARO
· Doure a cebola (picada) no azeite. Junte os tomates (pelados), as azeitonas (sem caroço), as alcaparras e 70 g de aipo (picado). Refogue
· Acrescente 1 litro de água. Junte então a pescada, as batatas (cortadas em rodelas). Tempere com sal e pimenta a gosto
· Cozinhe em fogo baixo, por 1 hora
*É especialista em Gastronomia e escreve quinzenalmente neste espaço