Bacalhau, amor a primeira vista
A iguaria tão versátil que cada canto de Portugal tem sua própria receita
Ir a Portugal, sem provar bacalhau, é como ir a Roma e não ver o Papa. Acontece que o peixe com que se faz o bacalhau não é encontrado nas costas portuguesas. O local exato da pesca foi, durante muito tempo, segredo bem guardado pelos primeiros pescadores, os Vikings. Portugueses, espanhóis, franceses e ingleses vagaram pelos mares do norte, à sua procura – da Terra Nova (Canadá) às costas da Noruega.
Dada sua expressão econômica Portugal e Inglaterra firmaram acordo (em 1510), contra a França, tentando garantir o domínio dessa pesca. Por pouco tempo; que, em 1532, os ingleses perderam (para os alemães) o direito de pescar na Islândia. Em troca ganhando em 1585, de espanhóis e portugueses, o direito à comercialização do peixe. Era uma pesca difícil. E acontecia, no Atlântico Norte, da mesma maneira. Todos os anos.
Entre março e outubro – quando as noites são breves, a temperatura da água é mais elevada e os peixes vêm à superfície em busca do alimento abundante das águas rasas. Tão importante era esse ofício que os barcos à vela, antes de partir, recebiam bênçãos de sacerdotes. Cada um com tripulação de 50 homens, aproximadamente. No convés ficavam os doris (pequenos barcos a remo), cuja “fragilidade ameaçava a vida dos tripulantes” – segundo Mario Neto, pescador que viveu essa experiência.
Hoje, tudo continua (quase) como antigamente. Manhã bem cedo, são baixados esses doris, que voltam à embarcação principal só quando estão cheios de peixes. Como isca, usam lulas. “Trabalhávamos vinte horas, com quatro horas de descanso e isto durante seis meses”, confirma aquele pescador. Os peixes eram “pesados a olho”, pelo capitão; depois abertos ao meio, para retirar vísceras; só então indo ao porão, para ser salgados. Sem as cabeças. E com todo cuidado, que sal demais queimava o peixe e de menos era insuficiente para sua conservação. Completando-se o processo em terra, quando eram colocados ao sol para secar.
Hoje são muitas as receitas de bacalhau em Portugal. Cada lugar tem seu jeito próprio de preparar. Revelando-se, nessa multiplicidade, segundo José Quitério, “uma autêntica história de amor à primeira vista a que o tempo outorgou profundidade e perpetuidade”. Mas nem sempre mereceu esse prato, por lá, o prestígio que tem hoje. No século XV, por exemplo, a preferência era por outros peixes (frescos ou secos): cação, carapau, pescada, raia, sardinha. Desde então, e por muito tempo mais, foi alimento apenas da gente simples.
Em 1647, por exemplo, segundo a Câmara de Lisboa, era só “remédio dos pobres”. Em outra referência, de 1654, constava ser “mantimento próprio de pobres e miseráveis”. Por não fazer parte da dieta da corte, Domingos Rodrigues, no primeiro livro de receitas escrito na língua portuguesa (Arte de Cozinha, 1680), não fez qualquer referência a ele. Só aos poucos foi ganhando importância. Em o Cozinheiro Moderno ou Nova Arte de Cozinha (1780), Lucas Rigaud já refere algumas receitas de bacalhau – Assado nas Grelhas, à Bechamel, à Provençal e “por outros modos”. A partir daí, receitas foram surgindo por todos os lugares. E ganhando prestígio. Falaremos delas no próximo artigo.