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Carnes de pena (3ª parte)

Lecticia Cavalcanti - Cortesia

A galinha chegou ao Brasil com Cabral. Os índios a viram, pela primeira vez, em 24 de abril de 1500, já de noite - segundo Caminha. Nunca fizeram sucesso, entre eles. Nem seus ovos, que continuaram preferindo os de jacaré. O mesmo com escravos, que depois aqui chegaram. Galinhas eram criadas pela gente simples da África só para vender. E nunca fizeram parte da culinária popular. Ovos eram, por lá, apenas remédio. Entre os poucos pratos (de galinha) pelos negros apreciados estão “xinxim” e “moambo” - prato que originou o vatapá. Por muito tempo, no Brasil, foi comida só de rico. “A mulher de Luís do Rego/ não comia senão galinha / inda não era princesa/ já queria ser rainha”, dizia versinho cantado pelo povo do Recife (1821), falando mal da mulher do Governador. Depois passou a ser, também, comida para doente e mulher parida. Garcia da Orta (em Colóquios) chegou a prescrever, para doente, “Uma galinha gorda, tirando-lhe primeiro a gordura que tem e deitem-lhe dentre umas talhadas de marmelos”. Não era consumida nos primeiros dias de luto porque galinha assada era comida de festa. Sem esquecer que aqui veio também, junto com os escravos, a galinha d’Angola - penas pretas, com pintas brancas, pescoço pelado e gosto semelhante ao faisão, na Europa conhecida como “turkey-henne” (galinha turca).

Frango foi o prato predileto de Dom João VI (1769-1826), durante todo o tempo em que viveu no Brasil - 6 por dia, três no almoço e três no jantar, assados, acompanhados de pão torrado e laranjas. Comia usando os dedos e jogando os ossos no chão. Foi fiel a esse gosto, até mor­rer. Já Dom Pedro II preferia can­ja. Tomava todos os dias. Inclu­sive no camarote imperial, quando ia ao teatro. A cena foi assim descrita por Raimundo Magalhães Junior (em Artur de Azevedo e sua Época) - “Vinham elencos da Europa e o imperador Pedro II prestigiava as representações sem dormir ou bocejar, fazendo questão apenas de tomar uma canja quente entre o segundo e o terceiro ato, que só começava, por isso mesmo, ao ser dado o aviso de que sua majestade terminara a canjinha”. Daí a zombaria, em 1888, do teatrólogo Artur Azevedo - “sem banana macaco se arranja, mas não passa monarca sem canja”. Os portugueses aprenderam, em Goa, a receita dessa “kanji” - “água de expressão de arroz com pimenta e cominho a que chamam canja” segundo discrição de Garcia da Orta (1563). “Caldo de arroz”, como a chamou o jesuíta Manoel Godinho, um século mais tarde. Aos poucos foi caindo, essa galinha, cada vez mais no gosto popular. De todo tipo - guisada, assada, frita, à milanesa, à caçarola. Com feijão branco, grão-de-bico, fava, aspargos, pirão ou repolho e linguiça. Em pratos como risoto, pastelão, torta, fritada, salpicão, cuscuz, arroz, xinxim, vatapá, cozido, sarapatel de miúdo de galinha e galinha de cabidela.

Muito se escreveu sobre esses animais. Até na Bíblia, em relatos que contam a passagem em que Pedro, pescador de Cafarnaum, por três vezes na Paixão negou Jesus. Para Shakespeare, galo era “trombeteiro da manhã” (Hamlet, 1º ato). Edmond Rostand escreveu “Chantecler” (1910) - nome de galo que acreditava, com o poder de seu canto, fazer nascer o sol, todas as manhãs. Entrou em nossa cultura. Nenhuma outra palavra tem tantos significados, na língua portuguesa. “Galinha” é mulher que se entrega fácil. “Galinha morta” é mercadoria vendida por preço baixo demais. “Galinha verde” foi apelido dos integralistas, na década de 30. “Pé de galinha” são rugas nos cantos dos olhos. “Dormir com as galinhas” é dormir cedo. “Quando as galinhas criarem dentes” define uma situação que jamais acontecerá. “Galo” é pequena inchação na testa. “Galo de rinha” é individuo brigão. “Frango” é homossexual. E também gol com a bola passando debaixo das pernas do goleiro. Faltando só lembrar que o ossinho em forma de forquilha, que se encontra no peito da ave, chama-se “fúrcula”. Duas pessoas seguram essa fúrcula, uma em cada ponta, formulando desejos. Puxam até quebrar. Tendo seu desejo realizado aquele que ficar com o maior pedaço do osso. Mas isso é só superstição. Ou não?

Receita>
Canja de galinha

Ingredientes
1 galinha gorda (de preferência de capoeira)
Sal e pimenta-do-reino
Azeite
1 dente de alho
1 cebola picada
Coentro e cebolinho
2 L de água
2 folhas de louro
1 xícara (rasa) de arroz
1 cenoura picada (opcional)

Preparo
Lave e limpe a galinha. Corte em pedaços. Passe limão e água fervendo. Tempere com sal e pimenta a gosto.

Aqueça azeite em uma panela e refogue ligeiramente alho, cebola, coentro e cebolinho. Junte galinha, água e folhas de louro. Deixe no fogo até que a galinha esteja bem macia. Retire os pedaços da galinha e coe o caldo.

Leve novamente o caldo coado ao fogo, adicionando arroz (e cenoura cortada em cubos, se quiser). Quando o arroz estiver cozido, junte a galinha desfiada em pedaços grandes. Sirva quente.

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