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Esqueceram do bacalhau

Iguaria é um dos símbolos máximos da culinária lusa - Da editoria de Arte


Em artigo anterior (14 de Outubro), falamos das 7 Maravilhas da Gastronomia de Portugal. Só para lembrar: Alheira de Mirandela, Queijo da Serra da Estrela, Caldo Verde, Arroz de Marisco, Sardinha Assada, Leitão da Barrada, Pastel de Belém. Eleitas, por votação popular, em 7 de julho de 2011. Estranho é que não conste, nesta lista, nenhum prato com bacalhau. Apesar do grande prestígio que tem por lá.

São mais de 1200 receitas catalogadas. De todo tipo: assado (no forno ou na brasa), cozido, cru, estufado, frito, gratinado, grelhado, guisado, como recheio de empadas e crepes. Sempre usando muito azeite, azeitona, louro, noz-moscada, pimenta (branca, preta ou verde). Mais alho, cebola, coentro, couve, hortelã, pimentão, poejo, salsa, tomate. Como complemento, quase invariavelmente, arroz e batata - assadas, cozidas ou como purês.

O pão se mistura ao bacalhau nas migas (o nome vem de migalhas - pedaços pequenos de pão ensopados em caldo, com aspecto de papa) e nas açordas (caldos transparentes temperados com salsa e alho, servidos sobre fatias de pão).

Algumas dessas receitas indicam lugares de onde vieram: à Moda de Águeda, à Alentejana, à Lafões, à Lisboa Antiga, à Portuense, à Valença, ao Vale de Cértima, à Viana do Castelo. Ou referem seu principal acompanhamento: à Poejada, de Cebolada, com batatas ao murro, com feijão, assado com pimentões, à couves do lagar, açorda de bacalhau com tomate.

Também refletem estados da alma: à Bom Vivant, à Bonne Femme, Espiritual (que recebeu esse nome, segundo se diz, por elevar no espírito nobres sentimentos). Ou são ligados a festas religiosas: Consoada (também chamado Bacalhau cozido com todos, normalmente servido na véspera do Natal - com muito azeite, vinagre, alho, batata, couve, ovo), Roupa-Velha (quando se corta em pedaços o que sobrou da Consoada, servida no almoço do dia de Natal), Bacalhau da Sagrada Família (feito na última semana de Agosto em Fonte Boa dos Nabos, perto de Ericeira).

Além daqueles próprios de ocasiões especiais: Bacalhau com Grão (que se faz na Malveira, no dia de seu mercado semanal), Bacalhau de Pau de Fileira (para comemorar a coberta do telhado da casa ou o final de uma obra).

Outros tiveram nomes dados em homenagem à nobreza: Bacalhau à Moda Aristocrata, à Conde da guarda, à Fidalga. Ou em honra de profissões: à Alfaiate, à Congregado (os que participavam da congregação religiosa dos marianos), à Fragateiro, à Lagareiro (os que trabalham em lagares - tanques onde se espremem azeitonas destinadas ao fabrico de azeite), à Marinheiro.

Também lembrando gente de prestígio: à Batalha Reis (exímio enólogo, amigo de Antero de Quental e de Eça de Queiroz), à Pardal Monteiro (importante arquiteto modernista), à Afonso Costa (Ministro da Justiça e dos Cultos de Teófilo Braga, para Fernando Pessoa “Lênin de capote e lenço”, “louco”, “traidor”, “vil” e, como não fosse pouco, um “sapo”). Sem esquecer o bacalhau à Salazar - uma ironia, por não levar azeite na receita, “já que grosso não precisa e magro não merece”.

O mesmo para quem Pessoa, com raiva, dedicou versos famosos: “Este senhor Salazar/ É feito de sal e azar./ Se um dia chove,/ A água dissolve/ O sal,/ E sob o céu/ Fica só azar”. À Gomes de Sá.

Outras receitas acabaram ganhando nome de seus criadores: à Brás (tasqueiro do Bairro Alto, em Lisboa), à João do Buraco (apelido de João Pereira), à Margarida da Praça (cozinheira do primeiro restaurante de Viana do Castelo), à Narcisa (exímia cozinheira de Braga), à Zé do Pipo (dono de restaurante no Porto). E sobretudo o Bacalhau à Gomes de Sá (dele falaremos na próxima semana).

Enfim, bacalhau há para todos os gostos. E (quase) todos os nomes. Revelando-se nessa multiplicidade de receitas lusitanas, segundo José Quitério, “uma autêntica história de amor à primeira vista”.

Todos os países têm receitas que o identificam. Transmitidas de geração em geração. Que fazem parte da tradição dos povos. Bacalhau é um desses símbolos portugueses. Eça de Queiroz, em carta a Oliveira Martins, reconheceu isto: “Os meus romances, no fundo, são franceses, como eu sou, em quase tudo, um francês - exceto num certo fundo sincero de tristeza lírica que é uma característica portuguesa, num gosto depravado pelo fadinho e no justo amor do bacalhau de cebolada!” E por que será que o bacalhau ficou fora da lista das 7 maravilhas da gastronomia de Portugal? Mistério. Um grande mistério.

RECEITA: BACALHAU DE CEBOLADA

INGREDIENTES
2 cebolas
4 dentes de alho
1 xícara de azeite
2 folhas de louro
4 postas de bacalhau
1 pimentão vermelho
800g de batatas
1 colher de sopa de vinagre
1 raminho de salsa
Azeitonas pretas
Sal e pimenta a gosto

PREPARO
Corte as cebolas e os dentes de alho em rodelas. Leve-os ao fogo, com azeite e louro. Junte o bacalhau. Tempere a gosto. Tampe a panela e deixe dourar o bacalhau. Corte o pimentão em tiras e coloque-os na panela. Vire a posta e faça o mesmo do outro lado. Salpique com vinagre
À parte, cozinhe as batatas
Junte tudo na mesma panela
Na hora de servir, decore com a salsa e com as azeitonas

*É especialista em Gastronomia. Escreve toda semana neste espaço.

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