Logo Folha de Pernambuco

Feijoada - patrimônio nacional

Lecticia Cavalcanti - Cortesia

Feijoada é prato genuinamente nacional. Agrada a todo mundo. O pesquisador, professor, fundador do Porto digital e grande amigo, Silvio Meira, até escreveu: “Feijões e feijoada não são, nunca serão meras abstrações computacionais são concretas, deliciosos componentes do corpo e da alma nacionais”.

Sua origem vem de fins do século XVIII, início do século XIX. Sem consenso em relação a como nasceu. A versão mais difundida, e provavelmente equivocada, sustenta que os senhores nos engenhos de açúcar, nas fazendas de café e nas minas de ouro davam aos escravos restos dos porcos - língua, orelha, pé, rabo. O prato teria vindo, pois, do cozimento destes ingredientes, misturados com feijão e água. Mas essa versão romanceada, das relações entre patrões e escravos, não se baseia em nenhuma fonte documental. E não encontra amparo nos fatos. Que escravos vindos da África, como nossos índios, nunca tiveram o hábito de cozinhar alimentos misturados na mesma panela - feijão era só feijão, batata só batata, carne só carne, milho só milho. Sem contar que o feijão dos escravos era servido sempre ralo, junto com farinha de mandioca ou de milho.

Assim escreveu Francisco Peixoto de Lacerda, Segundo Barão de Pati do Alferes (em Da Cultura do Café: memória sobre a fundação e custeio de uma fazenda na Província do Rio de Janeiro, 1878): “O preto trabalhador de roça deve comer três refeições ao dia; almoçar, às oito horas, jantar à uma hora e cear às sete horas. Sua comida deve ser simples e sadia. Em serra acima, em geral, não se lhe dá carne, come feijão temperado com sal e gordura, e angu de milho, que é comida substancial”. Além disso, bom lembrar, orelha, pés e rabos de porco não eram nunca desprezados pelo colonizador, sendo, inclusive, base de muitas receitas de prestígio na Europa: tripas à moda do Porto e pezinhos de porco de coentrada, em Portugal; spaghetti à carbonara (usando gordura da bochecha do porco), trippa alla fiorentina e paiata alla cacciatora, na Itália; tripes a la mode de Caen, oeufs à la tripe e terrine de queue de boeuf (rabo de boi) en gelée d’Estragon, na França; einsbein (joelho de porco) com chucrute, na Alemanha.

Versão mais provável é que nossa feijoada tenha mesmo nascido nas casas-grandes. A partir da adaptação de pratos tipicamente europeus, onde se preparavam cozidos de várias carnes - carneiro, ganso, pato, porco, toucinho, vaca. Aos quais juntavam legumes e hortaliças, com maior ou menor variedade. Tudo fervido conjuntamente, quase sempre em panelas de barro. Usando feijão-branco ou grão-de-bico. Reproduzindo o mesmo jeito do cozido e da caldeirada portuguesa; o bollito e a casoeula italiana; a olla podrida, a paella, o pringá, a pilota e a fabata espanhola; ou o cassoulet (literalmente “panela de barro”) francês - com feijão branco, carne de vaca, carneiro, ganso, pato ou galinha, linguiça, alho, cebola, tomate e temperos. A feijoada parece seguir essa tradição europeia das paneladas, mistura de leguminosas e carnes de todas as espécies. Do cozido português terá vindo, provavelmente, a ideia de misturar carnes e verduras com feijão - preto (no Sul) ou mulatinho (no Nordeste), na tentativa de obter uma refeição única, com sabor e sustança.

Pouco a pouco, o feijão passou a ter, em razão de seu sabor marcante, uma posição hegemônica no prato. Os sertanejos usam uma medida que não falha para calcular o tanto de feijão por pessoa - juntando os dedos da mão (cheia de grãos) em cuia. Esta é a porção por pessoa. Como feijoada é prato generoso, sugere-se colocar, no fim, uma porção extra na panela. Nossa feijoada seria, assim, o feliz casamento de técnica portuguesa com ingredientes nacionais. Um casamento, diferente de tantos outros, que deu certo. Muito certo.

Receita >  Feijoada

Ingredientes:

FEIJÃO
1 ½ kg de feijão mulatinho
1kg de charque
250g de orelha de porco salgada
250g de pé de porco salgado
250g de rabo de porco salgado
1kg de costela de porco defumada
350g de toucinho defumado
500g de lombo de porco defumado
½ kg de paio
½ kg de linguiça portuguesa,
1kg de carne de peito (temperada e refogada com todos os temperos)

TEMPEROS:
2 talos de salsão, 2 cebolas, 6 dentes de alho, 4 talos de cebolinho, 4 ramos de coentro, 4 folhas de louro, ¼ de colher (de sopa) de pimenta do reino, 250g de bacon picado e frito, sal a gosto

REFOGADO FINAL:
50g de bacon bem picado, 1 cebola bem picada, 2 dentes de alho bem espremido, 2 talos de cebolinho bem picados, 1 folha de louro, 100ml de cachaça, 25ml de suco de laranja

Preparo:

- Escolha, lave e deixe o feijão de molho. Lave as carnes salgadas. Deixe as carnes defumadas de molho por 12 horas
- Leve o feijão ao fogo com a água que ficou de molho. Deixe levantar fervura e escorra, descartando a água
- Troque a água das carnes. Ferva e escorra
- Pique e triture todos os temperos. Junte os temperos ao feijão e deixe marinando por quatro horas. Leve tudo ao fogo, com bastante água, juntando primeiro as carnes mais duras. E depois, as carnes mais tenras - linguiça, lombo, paio e a carne de peito (anteriormente refogada). Pingue água fria durante o cozimento, se o feijão começar a secar
- Depois de tudo cozido, retire e corte as carnes. Troque o feijão de panela e junte as carnes cortadas
- Para realçar o sabor, faça um refogado final com alho, cebola, cebolinho, louro, e bacon bem frito. Adicione cachaça e suco de laranja. Misture este refogado ao feijão e ajuste o sal
- Sirva com pimenta, arroz, farofa, couve cortada fininha (frita em azeite de oliva e temperada com sal, pimenta e alho), laranjas descascadas e cortadas em fatias

* é especialista em Gastronomia. Escreve toda semana neste espaço.

Veja também

BNDES libera empréstimo para recuperação de porto no Rio Grande do Sul
ESTRUTURA

BNDES libera empréstimo para recuperação de porto no Rio Grande do Sul

Anatel aprova fim da concessão da Oi e transferência para modelo de autorização
CONEXÃO

Anatel aprova fim da concessão da Oi e transferência para modelo de autorização

Newsletter