Geleias divinas
Cora Coralina (em Aninha e suas pedras) escreveu: “Recria tua vida, sempre, sempre. Remove pedras, planta roseiras e faz doces. Recomeça”. Pensei neste poema quando provei uma das geleias de Maria Fernanda - amiga muito querida, há mais de 40 anos. É a melhor professora de inglês que conheço. Sem contar que cozinha muito bem. Talento que herdou de dona Elza, sua mãe. Fernanda já criou seus filhos. E agora sem Callou, seu companheiro da vida toda, ficou um enorme vazio. Em 26 de maio, quando fariam bodas de ouro, escreveu uma carta para ele, falando dos filhos, dos netos, da falta de sua presença. “Em compensação”, disse ela, “tenho recebido uma visita que hoje se transformou em rotina. Sempre que estou no nosso quarto, um passarinho solitário aparece na janela. Ele pousa e fica me observando. Já o considero um mensageiro seu”. Então, por sugestão do passarinho, talvez, começou a fazer geleias. Divinas. No início, apenas para consumo próprio. Depois, para presentear amigos. E tão bem feitas eram que começou a receber encomendas. Tantas que todos os sábados, na feirinha de Casa Forte, passou a vender essas geleias. Colocadas em potes de vidro, e com tampas cobertas com tecido. Tudo feito, caprichosamente, por ela mesma.
Provando as geleias de Fernanda - no ponto certo, na consistência, no brilho e, sobretudo, no sabor, lembrei as de minha avó. Impossível esquecer o cheiro daqueles doces quase no ponto, tomando conta de tudo. Incensando a casa de araçá, goiaba, pitanga, jabuticaba e outras frutas da estação, avisando que vinha chegando a hora de raspar o tacho. Tacho de cobre pesado, herança portuguesa, largo quase três palmos grandes, duas alças, ardendo sobre velhos fogões de lenha. Tudo sob seu olhar vigilante, com experiência e sabedoria, para não deixar passar do ponto. E sempre com aquela mesma forma de fazer - tranquila, bem devagar, sem pressa, quase dolente.
Doce e afeto andam sempre juntos. São sabores que guardamos na memória. Para sempre. Porque nos levam de volta a outros tempos. Despertam saudades adormecidas. As geleias de Fernanda nos levam de volta a esse passado distante e já perdido. À velha cozinha da casa de nossas avós. Ela seguiu os conselhos de Cora Coralina. E talvez do passarinho. Recomeçou. Está fazendo geleias. Para alegria de seus filhos e netos. Que guardarão, para sempre, na memória o sabor desses doces.
Veja também
Ataque ao STF
PF investiga ataque fracassado ao STF como 'ato terrorista'
ATENTADO