Mais Gilberto Freyre
No artigo passado (04/05), celebramos o livro Açúcar, de Gilberto Freyre, que está fazendo 80 anos de sua primeira edição. Esta semana continuamos as homenagens. Seguem algumas frases de Freyre (indicando livros e páginas, para quem quiser conferir). Lembrando ao leitor que os alimentos tiveram, sempre, grande importância na vida e na obra de Gilberto Freyre.
· “Nunca deixei de revelar-me um glutão: nem como colecionador de descobrimentos de casas antigas, nem como colecionador de aventuras do paladar”. (Aventura e rotina, p. 71).
· “É tempo de se agitar no Brasil uma campanha pela arte de bem comer. Seria ao mesmo tempo uma campanha pela nacionalização do paladar. Nosso paladar vai-se tristemente desnacionalizando” (Tempo de aprendiz, vol. I p. 366).
· “Dizem os ingleses que não se faz um gentleman sem algumas gerações de beefsteak. E todos sabemos que um oficial alemão não se fazia outrora sem salame e cerveja; que um doutor de Coimbra não se faz, ainda hoje, sem muito bacalhau e grão-de-bico; e que um frade não consegue sê-lo no alto e puro sentido da vocação sem muita abstinência”. (Tempo de aprendiz, vol. II, p. 70).
· “A nutrição de tal modo age sobre a alma que a consegue, às vezes, plasmar ao seu jeito: a espessa cozinha baiana seria talvez capaz de brutalizar e deformar Santo Inácio ou São Francisco de Assis. Ou um anjo” (Tempo de aprendiz, vol. II, p. 70)
· “Ao analista científico de culturas não devia faltar sensibilidade a esses primeiros saberes dos homens sobre suas próprias manifestações socioculturais: as associadas à sua respiração, à sua procura de alimentos, ao seu comer, ao seu pescar, ao seu caçar, ao seu plantar, aos seus abrigos, às suas reservas de alimentos”. (Insurgências e ressurgências atuais, p. 208).
· “Há palavras com as quais se conseguem milagres... Delicioso é assim... E há toda uma filosofia em atravessar a ávida com a palavra delicioso nos lábios, distribuindo-a para a direita e para a esquerda como a destra untuosa e boa de um bispo distribui a bênção” (Tempo de aprendiz, vol. I, p. 384). · “O prazer do paladar é como o prazer do sexo, essencial à condição humana” (Além do apenas moderno, p.117).
· “O paladar é como o coração de que falava Pascal: tem suas razões que a razão desconhece” (Tempo morto e outros tempos, p. 304).
· “O paladar é a última coisa no homem que se deixa desnacionalizar por influências estrangeiras” (O outro amor de dr. Paulo, p. 60).
· “As preferências do paladar são condicionadas, nas suas expressões específicas, pelas sociedades a que pertencemos, pelas culturas de que participamos, pelas ecologias em que vivemos os anos decisivos da nossa existência” (Açúcar, p. 24).
· “Quando sinto vir de dentro de muitas casas o cheiro de mungunzá, ou provo o cozido ou o peixe de coco com pirão, fico até mais cheio de confiança no futuro do Brasil do que depois de ter ouvido o Hino Nacional executado ruidosamente por banda de música ou o Por que me ufano do meu país, evocado por orador convencionalmente patriótico” (Gilberto Freyre, Coleção Encontros, p. 89).
· “Como o César de Shakespeare, que preferia rodear-se de homens gordos e evitava os magros, era de escravos antes gordos do que magros que deviam cercar-se os senhores brasileiros” (Ingleses no Brasil, 154).
· Ainda no século XX, era comum amassar a comida com as mãos para pôr diretamente na boca das crianças. GF fala do prazer de saborear esses pratos “não só com o paladar nem apenas com os olhos, mas com as pontas dos dedos. Sentindo a comida com as mãos inteiras, lambuzando-se todo, sem etiquetas de garfo nem de colher de prata. Era uma desgraça, um menino sem mãos. Talvez fosse piro que um menino cego. Era com certeza pior que um menino surdo-mudo” (Dona Sinhá e o filho padre, p. 38).
· GF admirava os que se sentavam à mesa com prazer. “São quase sempre além de cordiais, de afetuosos, de sensíveis ao sofrimento ou aos problemas do próximo, pessoas em cuja companhia os outros se sentem bem” (Ascetas do paladar, artigo publicado na revista O Cruzeiro em 11/12/65).
· “Desconfio dos ascetas absolutos do paladar. Quando não são terríveis egoístas ou puritanos estreitos, são quase sempre pessoas de tal modo insípidas que, junto delas, há quem chegue a preferir a companhia de rufiões e até de bandidos... De ordinário são indivíduos fechados, dentro de suas insípidas e áridas virtudes e incapazes de qualquer confraternização” (Ascetas do paladar, artigo publicado na revista O Cruzeiro em 11/12/65).
· “Hitler de ordinário comia só. Melancolicamente só. Não tinha prazer algum em convidar quem quer que fosse para almoçar ou jantar em sua companhia. A não ser para discutir algum assunto urgente. Nunca pelo gosto de saborear, com amigos, um prato tradicional ou regional - dos excelentes pratos regionais que fazem da cozinha alemã uma das mais caracteristicamente nacionais da Europa. Era assim, como todo o seu nacional-socialismo, um antinacional e um antissocial. Não só comia, de ordinário isolado e sem convivas: comia como quem se requintasse em demonstrar seu desprezo pela culinária... Esse asceta saía às vezes da mesa pra ordenar massacres...” (Ascetas do paladar, artigo publicado na revista O Cruzeiro em 11/12/65).
P.S. Todas essas frases estão em Gilberto Freyre e as aventuras do paladar (Recife: Ed. Fundação Gilberto Freyre, 2013), livro (da colunista).
*É especialista em Gastronomia e escreve quinzenalmente neste espaço