Naquela mesa está faltando ele
A mesa está posta “com cada coisa em seu lugar”, como na Consoada de Manuel Bandeira. Toalha e guardanapos de linho branco. Pratos brancos com borda azul marinho. Talheres de prata com monograma, cuidadosamente arrumados - garfos à esquerda; facas à direita, com cerdas voltadas para dentro; colher, garfo e faca de sobremesa na frente de cada prato.
Copos acima e à direita. E lavanda de prata à esquerda. Meu pai na cabeceira e minha mãe sempre do seu lado esquerdo. Foi assim por toda uma vida. Mas agora, “Naquela mesa tá faltando ele/ e a saudade dele tá doendo em mim”, como na música que Sergio Bittencourt compôs quando seu pai, Jacob do Bandolim, morreu.
“Naquela mesa ele sentava sempre
E me dizia sempre o que é viver melhor
Naquela mesa ele contava histórias
Que hoje na memória eu guardo e sei de cor
Naquela mesa ele juntava gente
E contava contente o que fez de manhã
E nos seus olhos era tanto brilho
Que mais que seu filho
Eu fiquei seu fã”
Naquela mesa aprendemos, com ele, lições preciosas, que reconhecemos e proclamamos como nosso bem mais precioso. Aprendemos sentimentos de generosidade, solidariedade, lealdade e caráter. Aprendemos que vale sempre a pena ser correto no proceder, e fiel a nossos princípios, em todas as circunstâncias. Aprendemos que devemos praticar o gesto, não porque seja útil ou recompensador; mas apenas, e sobretudo, porque ele deve ser praticado.
Aprendemos a reconhecer todos como iguais. A lutar contra as desigualdades sociais que nos oprimem. E a assumir sempre o compromisso com um mundo mais solidário, fraterno e justo. Aprendemos a confiar no tempo que corre; entendendo a importância dos erros e acertos do passado; aceitando, em toda sua amplidão, as dádivas do presente; mas, sobretudo, compreendendo as promessas generosas do futuro.
Aprendemos, também, a sonhar. Apenas pelo prazer de sonhar, confiando na grandeza da natureza humana. Alguns desses sonhos foram só sonhos por ter sido breve o tempo ou por não querer o destino.
Ficaram as lições e o exemplo. O orgulho e o privilégio de ser sua filha. Mas também ficou um enorme vazio. Uma tristeza sem fim. A saudade de seu jeito doce e firme, carinhoso e forte, simples e altivo. “Eu não sabia que doía tanto... Naquela mesa tá faltando ele/ E a saudade dele tá doendo em mim”.
Resta o consolo de que um dia “No termo de todas as caminhadas, de todas as travessias, lá nos encontraremos. No último cais”, segundo palavras que me foram mandadas, de Portugal, por um amigo querido, o velho professor António de Abreu Freire.
*Lecticia Cavalcanti é especialista em Gastronomia