O quadro
Muito se tem escrito sobre o Bicentenário da Independência do Brasil, que agora celebramos. E sobre a figura de quem nos libertou de Portugal – Pedro de Alcântara Francisco António João Carlos Xavier de Paula Miguel Rafael Joaquim José Gonzaga Pascoal Cipriano Serafim de Bragança e Bourbon. Por aqui, era Pedro I. Por lá, Pedro IV – o Rei Soldado. Foi esse Pedro de muitos nomes que, em 14 de agosto de 1822, partiu do Rio de Janeiro na direção de São Paulo. Que, segundo informações do Ministro Conselheiro José Bonifácio de Andrada e Silva, estava em pé de guerra contra a Coroa. No caminho, teve que atravessar matas fechadas e rios. Mas, no vigor de seus 24 anos, não se intimidou, “dormirei sobre uma esteira e farei de travesseiro uma canastra (caixa revestida de couro, onde se guardam objetos). Alimentar-me-ei de feijão e, à falta de pão, não desdenharei a farinha de mandioca”. Andou 96 léguas em 11 dias. Um feito. Esse caminho que percorreu, 100 anos depois, seria transformado numa estrada, a Rio – São Paulo.
Só em 25 de agosto chegou D. Pedro a São Paulo. Ao contrário do que esperava, tudo por lá estava calmo. Foi recebido com missas, fogos de artifício e muitas festas. Numa delas conheceu Domitila de Castro, que depois converteu na Marquesa de Santos, e com quem teria 4 dos seus 18 filhos, mas essa é outra história. Em 7 de setembro, já no final da tarde, às margens do riacho Ipiranga, recebeu carta do pai D. João VI. Comunicando que perderia o status de regente, passando a ser mero delegado da Corte. Tendo ainda que se conformar em ver todos os ministros aqui, do Brasil, nomeados por Lisboa. Junto vieram duas outras cartas. Uma de José Bonifácio, outra de D. Leopoldina, sua esposa. Ambas lhe aconselhavam a romper com Lisboa. Assim se deu, sem mais dúvidas ou hesitações. Montou em seu cavalo, foi até o topo da colina e gritou: “É tempo! Independência ou Morte! Estamos separados de Portugal”.
Assim está em todos os livros de História do Brasil. Um relato, acompanhado, quase sempre, por ilustração de um quadro (O grito do Ipiranga) do paraibano Pedro Américo (1843-1905) – encomendado, em 1886, pelo Conselheiro do Império Joaquim Inácio Ramalho. O artista se comprometeu a pintar, pelo valor de 36 contos de reis, “um quadro histórico comemorativo da proclamação da Independência pelo príncipe Dom Pedro nos campos do Ypiranga”. Com a missão de apresentar uma visão gloriosa daquele fato histórico e melhorar a imagem de Dom Pedro, enfraquecida frente às ideias republicanas. Como toda pintura histórica, deveria imortalizar o acontecimento e seus heróis. E assim fez Pedro Americo. Uma cena que não correspondia inteiramente à realidade. Que, segundo testemunhas (Belchior Pinheiro de Oliveira e Manuel Marcondes de Oliveira), Dom Pedro não estava acompanhado de grande comitiva, nem montado em cavalo, mas numa “bela besta (mula de carga) baia (com pelagem amarelada)”, animal ideal para subir serras e morros. Tampouco usava traje de gala, mas roupa simples e empoeirada. E sua imagem não inspirava coragem nem patriotismo; que o príncipe não estava bem, naquele dia, vítima de terrível diarreia. Por conta da água salobra de Santos ou de algum prato condimentado que provou na viagem. O quadro está no Museu do Ipiranga desde sua inauguração, em 7 de setembro de 1895. Tudo como pode ser conferido no livro A extraordinária vida de Pedro Américo – e suas incríveis facetas, do advogado Thélio Queiroz Farias, recém-lançado pelas editoras Cepe e A União. Vale a pena ler.
Só para lembrar, são muitos os registros de alimentação durante essa viagem de Dom Pedro. Na maior parte do tempo, teve a comitiva que se contentar com tatus, carne seca, farinha de mandioca, queijo curado (puro ou com algum doce). Dessa viagem, saudades tiveram apenas das fartas e generosas refeições servidas em fazendas de café – Real Fazenda de Santa Cruz, Olaria, Três Barras e Pau d’Alho. Ali, tudo era luxo e requinte. Toalhas de linho rendado, talheres e baixelas de prata, porcelanas, cristais. Nas mesas, leitões assados inteiros (decorados com limão na boca), guisados de frango e de lebre, virado de feijão com torresmo. Que mereça registro, só um fato. Quando, na Fazenda Pau d’Alho, o coronel João Ferreira de Souza saiu de casa cedo, com o filho Francisco, para receber D. Pedro na estrada. Sua mulher, D. Maria Rosa de Jesus, cuidava dos últimos preparativos para o jantar. Foi quando, atravessando a fileira de coqueiros que rodeava a casa, lhe chegou um jovem cavaleiro empoeirado. Identificou-se como integrante da comitiva real. E confessou ter chegado na frente apenas por estar faminto, razão por que lhe pediu alguma comida. “Banquete e mesa não”, disse ela, por se destinar ao príncipe que logo viria. Roída pela piedade, ofereceu-lhe um prato da comida dos peões, servido em mesa de canto. Só mais tarde voltou o coronel. E logo beijou a mão daquele jovem faminto e brincalhão – o próprio príncipe D. Pedro. D. Maria perdeu a fala. E a fome. Pena que Pedro Americo não tenha registrado, no seu famoso quadro, essa outra verdadeira independência – que se deu mesmo, no reino dos sabores, feito da mistura democrática de ingredientes dos índios, dos jeitos de fazer dos escravos africanos e das receitas portuguesas aqui adaptadas.