O suflê de Eunive Paiva
Seu suflê de queijo é citado muitas vezes durante Ainda estou aqui, dirigido por Walter Salles
Domingo próximo é dia do Oscar. E Ainda estou aqui poderá receber a estatueta de melhor filme, melhor filme estrangeiro e melhor atriz. Baseado no livro de Marcelo Rubens Paiva, é dirigido por Walter Salles. Fernanda Torres e Fernanda Montenegro são Eunice Paiva, em diferentes fases da vida; além de Selton Mello, no papel de Rubens Paiva. Impossível não se apaixonar pela figura de Eunice Paiva, que se tornou símbolo da luta contra a Ditadura Militar. Depois que seu marido foi levado pela polícia e nunca mais voltou, decidiu estudar, formar-se em Direito e trabalhar ativamente pelos direitos dos desaparecidos e das causas indígenas. Fosse pouco, era também uma exímia cozinheira. Seu suflê de queijo é citado muitas vezes, no filme. Como quando ela diz a Vera (sua filha mais velha), “não trate de sumir porque hoje vou fazer suflê”. Também quando recebe carta dessa mesma filha, que passava temporada em Londres e confessava sentir “saudades do suflê”. Quando volta ao Rio, a mãe lamenta não ter podido recebê-la com o prato. E, ao ser levado pela polícia, Rubens Paiva tenta acalmar sua mulher dizendo “Volto a tempo para o suflê”.
Só para lembrar Suflê é o melhor exemplo, em culinária, de relação entre custo e benefício. Um jeito refinado, e ao mesmo tempo econômico, de apresentar crustáceos, frutas, queijos, verduras. Da França veio a receita e seu próprio nome, soufflé – particípio passado do verbo souffler (soprar, inflar). Decorrência óbvia da aparência fofa e leve que tem, mais parecendo ter sido inflado. A palavra foi usada, pela primeira vez, por Antoine Beauvilliers (1754-1817), na sua La Grand Taverne de Londres (inaugurada em 1782), na Rue de Richelieu (perto do Palais Royal), um precursor dos restaurantes como os que conhecemos hoje. Segundo Brillat-Savarin, foi “O primeiro a ter um salão elegante, garçons eficientes, uma adega cuidadosa e uma cozinha superior”.
A receita, aos poucos, começou a aparecer nos livros de culinária da época. Primeiro em The french cook (1813), de Louis Eustache Ude. Um chef que aprendeu o ofício com seu pai, na cozinha de Luís XVI; depois, serviu a Marie-Laetitia Ramolino Bonaparte, mãe de Napoleão; e, por fim, abandonou Paris para viver em Londres – onde publicou seu livro, em inglês mesmo, prometendo “um novo método para oferecer refeições boas e extremamente baratas”. Mais tarde, apareceu em Le pâtissier royal parisien (1815), de Marie-Antoine Carême, considerado maior cozinheiro de todos os tempos. Nele estão receitas de suflê salgado e, sobretudo, a grande novidade de um suflê doce que é servido quente – para ele, “a rainha da pâtisserie quente, antiga e moderna”. Sem esquecer que também está em L’art du cuisinier (1816), do próprio Beauvilliers, publicado um ano antes da morte do autor. Para ele, seriam “as minhas derradeiras despedidas”. Em todas as receitas, tendo o cuidado de aconselhar: “Logo que seu soufflé esteja bem crescido, ponha ligeiramente os dedos sobre ele, e, se resistir ao toque, é que está pronto... sirva logo, sem medo, que ele não recai”.
Passa o tempo e fazer suflê continua sendo um enorme desafio para qualquer cozinheiro. Porque, depois que sai do forno (onde cresce muito), começa logo a murchar. O físico húngaro Nicholas Kurti chegou a dizer: “Acho uma triste reflexão sobre nossa civilização que sejamos capazes de medir a temperatura da superfície de Vênus e não saibamos o que se passa no interior de nossos suflês”. E foi precisamente por conta de um suflê de queijo que não deu certo (em março de 1980) que o químico e físico francês Hervé This, do Institut National de la Recherche Agronomique (INRA), se devotou ao estudo da gastronomia molecular. Tentando explicar (em Um cientista na cozinha) os fenômenos que ocorrem durante o processo de preparação dos alimentos. Ele chegou a dedicar todo um capítulo (“Um suflê que deu certo?”) de seu livro ao suflê. Para ele trata-se, nada mais nada menos, de “uma espuma de claras de ovos adicionadas a um preparo: um bechamel aromatizado (para os salgados), ou uma mistura de leite, purê de frutas e açúcar (para os de sobremesa)”. Em sequência, discorre cientificamente sobre cada etapa do preparo. Com a base (salgada ou doce) pronta, deve-se juntar as gemas, mas sempre “fora do fogo, depois que a mesma tenha esfriado”.
Em seguida, juntar as claras em neve – nelas é que está o grande segredo do sucesso do suflê. “Quando começamos a bater as claras, as bolhas de ar que se formam são grandes, mas, quanto mais batemos, mais diminui o seu tamanho... e as pequenas bolhas são mais estáveis... Uma clara estará suficientemente batida em neve, para um suflê, quando ela aguenta o peso de um ovo com casca e tudo”. E completa: “Um pouco de sal ou de vinagre firmará as claras em neve”. Quando tudo estiver cuidadosamente misturado, colocar “em fôrmas (ramequins) untadas (para que não grude) e polvilhadas (para que suba facilmente), enchendo só dois terços da fôrma (para que não transbordem)”. Para encerrar, recomenda que se “faça uma crosta no alto do suflê (com açúcar ou queijo ralado), antes de levá-lo ao forno (as crostas evitam que as bolhas de vapor escapem)”. Como resume, “o suflê cresce porque as bolhas de ar aumentam sob a ação do calor (o ar se dilata), a água se evapora e o vapor formado vem aumentar as bolhas. A coagulação das proteínas dos ovos prende definitivamente as bolhas dentro da massa”. Mas fazer suflê, para ele, não é só uma questão de química e de física. Trata-se de, mais que tudo, unir “amor, arte e técnica”. E é mesmo difícil, sem dúvida. Muito. Nas cantorias, os repentistas dizem sempre “Cante quem souber cantar”. No suflê, seria “Faça quem souber fazer”.
Voltando ao filme, na sua cena final (com Eunice já interpretada por Fernanda Montenegro), os filhos lamentam ter fracassado na tentativa de assar o suflê. Em homenagem a essa mulher que só nos orgulha, e à grande interpretação dos atores, domingo vou fazer um suflê de queijo. E esperar, defronte da Televisão, quando anunciarem The Oscar goes to..... Fernanda Torres. Ou para o filme de Walter Salles Ainda estou aqui. Viva o cinema brasileiro! Viva Eunice Paiva!
RECEITA: SUFLÊ DE QUEIJO DE EUNICE PAIVA
INGREDIENTES:
2 colheres de sopa de manteiga
1 copo de leite
2 colheres de sopa de farinha de trigo
3 ovos
100 g de queijo ralado
Sal e pimenta a gosto
PREPARO:
Bata o leite, as gemas e a farinha no liquidificador. Derreta a manteiga em uma panela, acrescente a mistura batida no liquidificador e mexa até engrossar. Junte o queijo, sal e pimenta. Deixe esfriar. Acrescente as claras em neve. Misture delicadamente. Coloque em forma refratária untada e polvilhada com queijo ralado. Leve ao forno quente por mais ou menos 30 minutos. Sirva imediatamente.