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Terrorismo à mesa

"Não coma nada que a sua avó não reconheceria como comida" - Da editoria de Arte

A história dos sabores é, no fundo, um ato de escolha. A partir de variado conjunto de critérios. Oscilando entre as novidades da vanguarda e as certezas tranquilas do tradicional. Entre o convencional e o heterodoxo. Entre o futuro e o passado. Estudos recentes nos dão conta de que somos hoje 7, 59 bilhões de habitantes no planeta. Em 2050, seremos 9,3.

Tempo muito curto para a história da humanidade. Vai ser preciso, então, gerar comida. São muitas as experiências, nesse campo. Com dinheiro da Fundação Bill Gates, o agrônomo Zhikang Li, da Academia Chinesa de Ciências da Agricultura, desenvolveu uma variedade de arroz que cresce rápido, produz mais grãos e é muito resistente à inundações, secas, pestes, insetos.

Em parceria com a Universidade de Missouri, a startup americana Beyond Meet desenvolveu um composto de ervilha que, depois de processado, fica muito parecido com um pedaço de carne. A Hampton Creek Foods, de São Francisco, criou um pó esverdeado feito a partir do gergelim, que tem gosto de ovo e pode ser usado em bolos, saladas e doces.

Para a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) os insetos são o futuro. Por serem ricos em proteínas. Proporcionalmente, moscas têm quase o dobro do que os bois. Com a vantagem de terem pouca gordura e boas doses de cálcio e ferro. Holandeses até já investem em pesquisa para dar início à criação de fazendas de insetos.

Como se tudo isso fosse pouco, a NASA encomendou projeto a Arjan Contractor, engenheiro mecânico especialista em impressão 3D, para desenvolver uma impressora capaz de sintetizar alimentos. Transformando carboidratos, proteínas e outros nutrientes em pós que poderão ser misturados a o gosto do cliente.

Mas não se assuste, caro leitor. No século XIX, as previsões para o século passado já eram bem pessimistas. Em 1893, por exemplo, a escritora Mary Elizabeth Lease até disse: “Em cem anos, as pessoas vão se alimentar exclusivamente de pílulas sintéticas”. E nada disso aconteceu. Muito pelo contrário. Na gastronomia a nova tendência é a simplicidade e o uso de técnicas naturais.

Conservadoras até, não é preciso ter medo da palavra. Muitos defendem essa teoria. Entre eles, Michael Pollan, professor de jornalismo na Universidade da Califórnia e colaborador do New York Times. Ele passou a estudar, compulsivamente, tudo o que dissesse respeito aos alimentos. Desde sua produção, no campo, até seus efeitos no corpo humano. Virou guru da vida saudável. E um pensador dos novos hábitos à mesa. Publicou muitos livros sobre o tema. Alguns até best-sellers. Para ele, existe uma forte ligação entre alimentos, economia, política e sociedade.

“Aprendi muito sobre economia e sobre como o capitalismo funciona, estudando comida”. “A lógica do capitalismo é diferente da lógica da natureza e o desafio, para nós, é fazer com que a lógica capitalista não destrua a natureza ou a nós mesmos. Porque ela não está interessada na nossa saúde e sim em produzir quanto mais comida possível”.

Afinal, compreendendo como funcionam as cadeias de produção. Visitando uma fazenda de galinhas, na Califórnia, encontrou instalações automatizadas – nas quais “uma ave cacarejante é transformada, em dez minutos, num pacote plastificado contendo suas partes devidamente separadas” (em Dilema do onívoro).

É que, aos poucos, a indústria foi se apropriando da função de cozinhar. E criou produtos com muito sal, muito açúcar e muita gordura. “Uma dieta que afeta nossa saúde e contribui para diabetes, obesidade, hipertensão” (em Defesa da comida). Daí resultando alimentos processados, “esvaziados de conteúdo e história, que ocupam o lugar da cozinha tradicional”.

Sua principal missão passou a ser convencer as pessoas de que é preciso voltar à cozinha. “Coma comida, coma pouco e coma vegetais” (em Defesa da comida). E, sobretudo, “Não coma nada que sua avó não reconheceria como comida” (em Regras da comida). Em seu livro Cozinhar – uma história natural de transformação, ensina:
• “Cozinhar sua própria comida é um ato político importante”.

• “Cozinhar é uma das atividades mais interessantes e recompensadoras que os seres humanos podem fazer”.

• “Cozinhar nos envolve em toda uma rede de relacionamentos sociais e ecológicos: com plantas e animais, com o solo, com os fazendeiros, com os micróbios dentro e fora de nossos corpos e, é claro, com as pessoas que se nutrem e se deliciam com a nossa comida”.

• “A refeição compartilhada é um dos fundamentos da vida em família, o lugar onde as crianças aprendem a arte de conversação e adquirem os hábitos que caracterizam a civilização: repartir, ouvir, ceder a vez, administrar diferenças, discutir sem ofender”.
O tempo dirá quem tem razão. Por enquanto, o moderno é a tradição. E o novo é o velho. Ainda bem!

RECEITA
PURÊ DE BATATAS
– a mais famosa receita do chef Joël Robuchon, considerado O chef dos chefes do século XX, morto no mês passado aos 73 anos.
INGREDIENTES:
1 kg de batatas
1 colher de sopa de sal grosso
250 g de manteiga (de excelente qualidade) gelada
250 ml de leite
Sal e pimenta do reino a gosto

PREPARO:
• Lave as batatas, sem descasca-las. Coloque em panela com água (o suficiente para cobri-las, passando dois dedos) e sal grosso. Deixe a panela tampada por 30 minutos.
• Escorra as batatas. Tire a pele. Esprema. Coloque as batatas espremidas numa panela, em fogo baixo. Vá juntando, aos poucos, a manteiga gelada. Mexa vigorosamente até que o preparo fique “liso, ligado e untuoso”, ensinou ele em seu programa de televisão Bon appétit Bien Sûr.
• Ainda, em fogo baixo, adicione o leite (bem quente) em fio, mexendo bem.
• Tempere com sal e pimenta.

*É especialista em Gastronomia e escreve quinzenalmente neste espaço.


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