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Utopia culinária

Utopia culinária - Lehi Henri/Folha de Pernambuco

Utopia é palavra de origem grega - “ou” (não) e “topos” (lugar). Um “não-lugar” ou “lugar que não existe”, portanto. E acabou como representação de uma civilização ideal. Tudo começou com Thomas More, em 1516. Segundo historiadores, inspirado nas narrações de Américo Vespúcio (em 1503), em seu Mundus Novus - primeiro grande best seller do planeta, com mais de 40 edições, no início do século XVI. É que Vespúcio narra uma feitoria, em Cabo Frio, em que se encontravam 21 homens, mulheres e crianças que seriam degredados para uma ilha ainda inabitada. A mesma que depois foi batizada com o nome de um fidalgo português que tinha contrato de exploração do pau Brasil em todo o Nordeste, Fernão de Loronha. Seja como for, a utopia de More é uma ilha onde todos os cidadãos vivem em casas iguais, têm trabalho, recebem alimentos e roupas, e em seu tempo livre se dedicam à leitura e à arte. Cada um de nós tem sua própria utopia. Para Manuel Bandeira esse lugar era Pasárgada. Ele próprio explica: “Este foi o poema de mais longa gestação em toda minha obra. Vi pela primeira vez esse nome quando tinha os meus dezesseis anos e foi num autor grego. [...] O nome Pasárgada, que significa “campo dos persas”, suscitou na minha imaginação uma paisagem fabulosa, um país de delícias [...]. Mais de vinte anos depois, quando eu morava só na minha casa da Rua do Curvelo, num momento de fundo desânimo, da mais aguda doença, saltou-me de súbito do subconsciente esse grito estapafúrdio: “Vou-me embora para Pasárgada”. Assim continua o poema: “Lá sou amigo do rei/ Lá tenho a mulher que eu quero/ Na cama que escolherei”.

Já para o poeta popular paraibano Manoel Camilo dos Santos (1905-1987), sua utopia era São Saruê - com rios de leite, lagoa de mel de abelha, açude de vinho, cacimbas de café. Tudo como se vê nesse poema memorável (Viagem a São Saruê):

Lá eu vi rios de leite
barreira de carne assada
lagoa de mel de abelhas
atoleiro de coalhada
açude de vinho quinado
monte de carne guisada.

As pedras em ‘São Saruê’
são de queijo e rapadura
as cacimbas são café
já coado e com quentura
de tudo assim por diante
existe grande fartura.

Feijão lá nasce no mato
já maduro e cozinhado
o arroz nasce nas várzeas
já prontinho e despolpado
peru nasce de escova
sem comer vive cevado.

Galinha põe todo dia
em vez de ovos é capão
o trigo em vez de semente
bota cachadas de pão
manteiga lá cai das nuvens
fazendo ruma no chão.
Os peixes lá são tão mansos
com o povo acostumados
saem do mar vêm paras as casas
são grandes gordos e cevados
é só pegar e comer
pois todos vivem guisados.

Tudo lá é bom e fácil
não precisa se comprar
não há fome e nem doença
o povo vive a gozar
tem tudo e não falta nada
sem precisar trabalhar.

Maniva lá não se planta
nasce e em vez de mandioca
bota cachos de beijus
e palmas de tapioca
milho, a espiga é pamonha
e o pendão é pipoca.

As canas em ‘São Saruê’
em vez de bagaço é caldo
umas são canos de mel
outras açúcar refinado
as folhas são cinturão
de pelica preparado.

Dando-se por findo esse artigo com um convite, ao leitor amigo, para que descubra qual a sua utopia. Que talvez esteja tão perto. Talvez, sem que nos demos conta disso, é aqui mesmo - a família, os amigos, o trabalho. E uma boa mesa, claro.

*É especialista em gastronomia e escreve quinzenalmente neste espaço




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