Um olhar sério sobre a “velha dos gatos”: precisamos falar sobre acúmulo de animais
Geralmente essa pessoa não tem noção de que pode estar praticando maus-tratos
Tenho certeza de que você conhece ou já ouviu falar de alguém que tem mais animais do que consegue cuidar em casa. Alguém que abdica de uma vida social para cuidar de 30, 40 pets que foram chegando no seu ambiente doméstico de forma gradual.
Por um lado, temos uma pessoa extremamente bem-intencionada que quer cuidar de todos esses cãezinhos ou gatinhos, em sua maioria. Do outro lado temos os animais, que podem estar ou não (este sendo o caso mais provável) sendo bem cuidados dentro de um pequeno espaço.
As condições de higiene, alimentação e saúde desses pets e do próprio tutor nem sempre estão sendo supridas por conta do excesso de trabalho que o cuidado exige. E é aí que o acúmulo de pets ultrapassa o carinho e amor e vira maus-tratos.
Não existe um limite de animais que alguém possa ter, então não vá diretamente julgando (o que não deve ser feito em nenhuma situação) aquela vizinha que tem mais de três cachorros e cinco gatos dentro de casa. O que existe é uma ideia geral do que os animais precisam ter para uma vida saudável.
“A pessoa não necessariamente é acumuladora e pratica maus-tratos. Se a pessoa tem condição de prestar cuidados médico-veterinários, alimentação, assistência emocional, ambiente adequado ao Pet (ou seja, lhe proporcione bem estar físico e emocional) , a quantidade de pets não determina que ela pratique maus-tratos”, explicou a médica-veterinária e gestora do Adota Pet (plataforma que disponibiliza pets para adoção no Recife), Amanda Santos.
Essa distinção sobre qual é o limite do bem-estar tanto para o pet quanto para uma vida saudável do tutor depende de diversos fatores. Esse tutor tem ajuda? Esses animais vocalizam muito? O ambiente apresenta mau cheiro? Essa pessoa consegue ter uma vida funcional, sem precisar limpar e cuidar dos pets o tempo todo? Os pets estão bem alimentados e com a saúde em dia?
Suspeitar de que alguém acumula animais nem sempre é certeza, pois apenas profissionais podem determinar um caso do tipo. O que alguém preocupado pode fazer é conversar com a pessoa de forma amistosa para tentar descobrir como ajudar em caso de necessidade (tanto dos animais quanto do possível acumulador).
“É importante ressaltar que o diagnóstico de "acumulador" só pode ser emitido por um médico (psiquiatra). E o de maus-tratos por um médico veterinário. Talvez, se a situação for apenas de suspeita de que a pessoa está com mais animais do que o adequado, seja melhor o vizinho conversar com parentes, amigos, entender melhor a situação. Em caso de mau cheiro, sujidades que sejam claras, a Vigilância Sanitária pode ser acionada. Em caso de suspeita forte ou verificação de maus-tratos, a polícia pode ser acionada. Os animais não podem sofrer, isso é indispensável. Se for possível um contato mais amistoso, é melhor para todos (desde que os animais fiquem bem).”, ressaltou Amanda.
A médica-veterinária reforçou, para pessoas que não estão passando por uma desordem psicológica, que é possível ajudar animais de outras formas, sem necessariamente levá-los para casa.
“Existem, também, os pets comunitários. A pessoa não precisa levar para dentro de casa para cuidar. Sabe aqueles bichinhos que todos na rua conhecem? E cuidam? Esses são pets comunitários e recebem amor e cuidados de muitos humanos. É também uma forma de cuidar sem levar para dentro de casa”, recomendou Amanda.
O diagnóstico de “acumulador” depende de um profissional da saúde mental porque isso faz parte de uma psicopatologia: o Transtorno de Acumulação Compulsiva de Animais, ou Síndrome de Noé. Por se tratar de uma desordem psíquica, a pessoa não sabe que está fazendo algo errado e tende a negar a situação.
“É uma desordem psicológica na aual o acumulador tem a dificuldade de compreender o sofrimento gerado ao alojar grandes quantidades de animais. Porque como é uma patologia, ele vai acumulando, mas não tem essa noção que está acumulando em lugares pequenos, quentes, desconfortáveis. Então, muitas vezes, eles negam a situação”, explicou a psicóloga Flávia Callado, do Real Hospital Português.
Segundo a psicóloga, há um perfil comum para acumuladores. São geralmente mulheres com 60 anos ou quase nesta idade que tendem a ter depressão e apresentam isolamento.
Essas mulheres podem estar, no seu subconsciente, cumprindo um papel social que lhes é colocado pela sociedade: o de cuidadora, pois mulheres são comumente delegadas à responsabilidade com os filhos, com os idosos da casa, com o esposo e com outras mulheres que estão debilitadas.
As pessoas com o Transtorno de Acumulação Compulsiva de Animais se dividem em três perfis: o cuidador sobrecarregado, o salvador de uma missão e o explorador de animais.
“O cuidador sobrecarregado tem consciência do problema e tenta oferecer os cuidados ideais dos animais. Ele faz o possível, vai cuidar, comprar ração, mas por questões financeiras ou de saúde, percebe que não está aguentando essa carga”, explicou Flávia.
Uma característica do cuidador sobrecarregado é que ele permite que outras pessoas façam parte, pede ajuda para ficar com os animais, com a limpeza e com custos.
O salvador de uma missão encara os animais sob seus cuidados como algo muito pessoal, é o herói e se propõe a dar conta de tudo. Ele sacrifica muito de sua vida social e não permite que outras pessoas cuidem de seus pets.
Já o explorador de animais é o tipo que se sente superior à vida de qualquer animal, então vai usar o pet para algum benefício próprio, sem deixar que outras pessoas se envolvam, e depois se desfazer.
Segundo a psicóloga, as pessoas que acumulam animais estão passando por um processo muito doloroso dentro da própria cabeça. Por isso, é possível haver descaso com a própria saúde e com a dos animais.
Flávia relatou que alguns acumuladores podem até deixar um animal morto dentro do ambiente com outros pets por se recusar a acreditar nessa morte.
O que fazer?
Independentemente de ser ou não diagnosticada, a suspeita de acúmulo deve ser inicialmente investigada sem envolver julgamento ou humilhação do tutor dos animais.
“A quantidade de pets sob responsabilidade de uma pessoa deve ser compatível com a garantia de ela disponibilizar: tempo, carinho, assistência veterinária, alimentação, espaço a cada um deles. Se está se tornando difícil, é um sinal de alerta”, orientou a médica-veterinária Amanda Santos.
Se é observado que esses fatores não estão sendo respeitados, é a hora de se aproximar de alguém da família, vizinhança ou até da própria pessoa para perguntar sobre os animais.
Segundo a psicóloga Flávia Callado, os acumuladores são pouco sociáveis e podem sofrer de depressão.
“Essas pessoas têm muito sofrimento. Perda de entes queridos, carência, sentimento de responsabilidade exarcebado”, relatou a psicóloga.
Se possível e antes que a situação chegue a efetivamente maus-tratos, é interessante o diálogo com uma pessoa que demonstra sinais do transtorno estabeleça confiança.
Oferecer ajuda é uma ótima forma de iniciar um convite que, com o passar do tempo, leve ao tratamento do transtorno por um profissional da psiquiatria.
A abordagem dessa pessoa deve ser feita sem estigmatizar ou agredir. O recomendado é que um profissional de saúde mental possa acompanhar a vistoria ou retirada dos animais, caso seja comprovado maus-tratos, para que a situação emocional possa ser controlada.
O comportamento nem sempre é pacífico, e essa pessoa pode ser agressiva, tanto com os pets quanto com outras pessoas.
“Não se tira do acumulador as coisas. Tem todo um trabalho de sensibilização, principalmente para ele entender a funcionalidade do que está acontecendo. Por mais que você tente fazer uma forma não drástica de abordagem é interessante estar com alguém da da saúde mental para essa pessoa saber exatamente como lidar com a pessoa que está ‘perdendo os pets’. É muito importante não julgar, pois ali está é uma pessoa que está doente, adoecida”, explicou a psicóloga.
Canais de denúncia:
Recife: Quaisquer denúncias podem ser feitas através do serviço do SOS Animal, pelo site http://sosanimal.recife.pe.gov.br/ e na plataforma Conecta Recife, na qual o denunciante pode relatar o ocorrido. Outro canal para denúncia é também por meio do número (81) 3355-1670. O anonimato é garantido.
Pernambuco: 190, para a polícia, que encaminha a situação para o Cipoma.