Inspiração Recife: Cultura e Criatividade
por Dirceu Marroquim
Em novembro de 2021 a Unesco anunciou a entrada do Recife na Rede de Cidades Criativas, na categoria música. Trata-se de uma iniciativa de caráter global, que tem como objetivo “fortalecer a cooperação com e entre as cidades que têm reconhecido a criatividade como um fator estratégico de desenvolvimento sustentável, nos aspectos econômicos sociais, culturais e ambientais”. A inscrição feita por iniciativa do poder público, a partir da Secretaria de Cultura do Recife, com ativa participação da sociedade civil, resultou em um processo construído a muitas mãos, diverso e democrático. Nesses termos, mais que uma premiação, a chancela é um compromisso com os setores da economia criativa e das tradições cuja relevância tornam a nossa cidade no que ela é: cheia de cores, de respeito às diferenças e que valoriza o seu patrimônio cultural.
O Recife tem em sua própria formação histórica a cultura e, por conseguinte, a criatividade como um eixo central da forma de existir das mulheres e dos homens que fizeram e fazem dessa cidade uma referência no Brasil e no mundo. Para termos uma ideia, a capital pernambucana é a cidade no país que mais concentra representações dos bens reconhecidos como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil. Ou seja, concentra mais de 20% de todos os bens culturais nacionalmente reconhecidos pelo Iphan nessa categoria. Alguns destes têm até certidão de nascimento, com direito a título de cidadão recifense e tudo mais, como o frevo, por exemplo, que é chancelado como Patrimônio Cultural da Humanidade. Somando-se aí os maracatus de baque virado e solto, os caboclinhos, o cavalo-marinho, a ciranda, o coco, os bois, os pastoris, os afoxés, entre outros.
E é justamente por isso que a cultura do Recife se mostra como um importante vetor de desenvolvimento social e econômico da cidade. Só no Carnaval, o maior ciclo festivo aqui celebrado, 2,7 milhões de pessoas se fizeram presentes nas folias momescas com incremento de R$ 2 bilhões na economia local. Além disso, são mais de 1.800 apresentações culturais (majoritariamente locais), 50 mil postos de trabalho temporário criados e 96% da capacidade hoteleira ocupada.
A pujança dos dias de festa revela um Recife que se prepara o ano todo para as folias do Carnaval, do São João, do Natal. São milhares de pessoas que constroem comunitariamente seus fazeres culturais, no bordado das roupas, no afinar dos tambores, das horas a fio de acerto de marcha. Essas pessoas, como nós, a maior parte dos recifenses, vêm de origens muito diversas. E, ao vê-las em seus trajes solenes, da seriedade da brincadeira, pouco pensamos sobre o que a sua existência diz sobre a nossa cidade como um todo. O emaranhado de significados presentes nos tambores silenciosos — e muitas vezes silenciados —, nas preacas dos caboclinhos, enfim, nas formas de manifestar a cultura do Recife, é traduzido na sua existência material.
O poeta alemão Bertold Brecht escreveu certa feita versos cujos questionamentos me parecem centrais: “Quem construiu a Tebas de sete portas? Nos livros estão nomes de reis: Arrastaram eles os blocos de pedra? E a Babilônia várias vezes destruída. Quem a reconstruiu tantas vezes?”. Quando andamos pelo Recife, olhamos os seus monumentos, suas arquiteturas monumentais, ecléticas, neoclássicas, dos templos barrocos, pouco, ou quase nunca, nos perguntamos sobre as mãos que construíram esses edifícios, o que faziam nas horas do descanso, da vida que levavam, onde moravam. Transformamos a história em cotidiano, invisibilizamos o esforço humano empregado na construção dos nossos vestígios materiais. E mais ainda, sequer conectamos esses bens com as manifestações culturais centenárias que têm como palco os ciclos festivos.
As perguntas feitas por Brecht poderiam muito bem ser feitas às igrejas de Nossa Senhora do Livramento e do Rosário dos Homens Pretos, poderiam falar sobre as trabalhadoras e os trabalhadores que construíram os aterros que deram origem aos cartões-postais da cidade, como a Rua da Aurora, entre tantos outros. Mas uma outra pergunta que agora me soa como fundamental, e que não foi feita por Brecht, é: como e de que maneira essas vidas se conectam com as dinâmicas culturais do Recife e lhe conferem um ativo de reconhecimento internacional? Para responder esta pergunta, julgo necessário recuarmos um pouco no tempo com o intuito de fazer um sobrevoo na história da cidade.
Gabriel Soares de Sousa, no seu Tratado descritivo do Brasil em 1587, observou o intenso movimento dos barcos na boca dos arrecifes com seus tonéis de açúcar. Estas navegações olhavam para uma estreita faixa de terra, “uma ponta de areia onde está uma ermida do Corpo Santo. Neste lugar vivem alguns pescadores e oficiais da ribeira”. O cronista também observou ainda que havia ali “alguns armazéns que os mercadores agasalhavam os açúcares e outras mercadorias” (SOUSA, 2013). Esta ponta de areia, à qual praticamente se restringia o povoado, era a atual cidade do Recife. Com habitações voltadas ao trabalho da pesca e armazém para o escoamento do açúcar, era, basicamente, um bom porto para Olinda.
No momento inicial da colonização, o rudimentar povoado do Recife ainda não tinha, ao olhar para a ilha contígua e para a parte continental, uma vista propriamente urbana. A atual Ilha de Antônio Vaz, chamada à época de Ilha dos Navios, devido, segundo Fernando Pio, a uma “oficina apropriada a reparos de embarcações” (PIO, 1939, p. 37), possuía a edificação do Convento de Santo Antônio, cuja construção data do ano de 1606.
A paisagem daquele povoado começou a ser mudada significativamente com a chegada da Companhia das Índias Ocidentais, em 1630. O Recife era um ponto estratégico, não só pelo porto, mas pela potencialidade para a construção de um sistema de defesa para evitar possíveis ataques. Durante os 24 anos de ocupação, mudanças importantes do ponto de vista do ordenamento territorial foram operadas, sobretudo durante o governo de Maurício de Nassau (1637-1645).
Com a chegada de Maurício de Nassau, a dinâmica do então povoado mudou, passou de uma vila de pescadores para ser o centro administrativo e econômico da Companhia das Índias Ocidentais em Pernambuco. Com isto, o fluxo de pessoas que circulavam naqueles espaços também se ampliou, e essa dinâmica também demandava uma solução para a questão das moradias. A antes inóspita Ilha de Antônio Vaz ganhou novos ares, mais do que isso, engordou o seu chão com incontáveis aterros, vencendo gradualmente a luta contra os terrenos pantanosos da ainda anfíbia cidade do Recife.
É importante frisar que, com esse incremento territorial, da reordenação urbana da cidade, novos fluxos culturais foram sendo estabelecidos a partir da mudança do perfil populacional que passava a habitar essas regiões. Se, por um lado, foi ampliada a diversidade étnica existente naquela então vila de pescadores, com a chegada dos mercenários contratados pela Companhia das Índias Ocidentais, dos comerciantes judeus que tornavam sua presença de maneira mais ostensiva numa promissora rede comércio; por outro, também foi continuada, em menor proporção que na fase anterior da ocupação portuguesa, a entrada de africanos escravizados para a lida não mão obracomo mão de obra, seja no contexto urbano, de construção das cidades, seja no próprio comércio do açúcar e na lida dos engenhos. Estima-se que, entre 1576 e 1700, entraram pelos portos brasileiros 890.560 pessoas escravizadas vindas majoritariamente da África Central, como é possível verificar na imagem abaixo. Pernambuco era o segundo ponto de desembarque no tráfico atlântico de escravizados no período em tela, e tem-se contabilizado que 241.031 pessoas foram desembarcadas nesse território.
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Eram pessoas vindas de diferentes regiões do continente africano, diversas étnica e culturalmente, que passaram a ter sua existência compartilhada em um território desconhecido, criando novas relações e redes de solidariedade. Apesar da queda de desembarque no período da ocupação da Companhia das Índias Ocidentais, a preocupação desses sujeitos em relegar uma vasta produção iconográfica sobre as suas possessões deixou vestígios visuais fundamentais para entendermos inicialmente como essas relações foram estabelecidas.
A rica iconografia do período da ocupação flamenga no Recife dá uma dimensão da complexa trama social existente já naqueles idos da cidade colonial. Mesmo nas imagens a dimensão de ocupação das margens, quase sempre nos cantos das telas, representa muito mais que uma simples opção estética, era representação de uma força motriz social de exclusão que atravessa o tempo. A população escravizada, que passou a marcar uma presença efetiva no território recifense, mesmo que forçosamente trazida, nos oferece histórias de resistência e de inspiração que se traduzem hoje nas diversas manifestações afro-brasileiras que fizeram e fazem do Recife a Cidade da Música.
É fundamental pensar que parte do nosso legado material das igrejas ricamente adornadas, caiadas de branco, com semblante barroco, tenha sido edificada precisamente por grupos sociais que são silenciados das narrativas contemporâneas sobre os espaços do centro do Recife. Existem algumas trajetórias que gostaria de destacar aqui que podem proporcionar outros olhares a partir de uma outra lógica de perceber a cidade e os seus vestígios materiais.
A primeira delas é a do pedreiro Manoel Ferreira Jácome, mestiço, que possivelmente esteve na condição de cativo e viveu no Recife entre o final do século XVII até as primeiras décadas do século XVIII. Conhecido desde muito jovem, constava na lista entre os “‘oficiais mais peritos’ entre os de sua arte”. As suas mãos participaram de obras fundamentais, seja de construção, seja de reparos, para a compreensão do centro do Recife, tais como: Convento de Santo Antônio, Basílica do Carmo, Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, Ordem Terceira de São Francisco do Recife, Igreja da Madre de Deus e Nossa Senhora Conceição dos Militares, em quase todas atuando na construção, como auxiliar do mestre artífice português Antônio Fernandes de Matos.
No entanto, nenhuma dessas obras foi tão proeminente quanto a construção da Igreja de São Pedro dos Clérigos, situada no bairro de Santo Antônio. É dele a autoria da planta da igreja e de elementos da própria fachada. Além disso, participou de várias irmandades, como a de Nossa Senhora do Livramento dos Homens Pardos, na irmandade de artífices de São José do Ribamar, entre outras. Morou na casa à Rua das Águas Verdes, nº 10, onde funciona o atual Centro de Design do Recife, próximo, portanto, a sua principal contribuição para a arquitetura eclesiástica da cidade do Recife.
Outra trajetória relevante e que merece um destaque nestas páginas é a de João de Deus Sepúlveda, pintor, mestiço, que, durante o século XVIII, deixou marcada a sua presença que perdura até hoje. Desde a “Virgem da Ordem Terceira de São Francisco”, cuja autoria é a ele atribuída, “A Batalha dos Guararapes”, situada no forro da Igreja de Nossa Senhora da Conceição dos Militares, situada à Rua Nova, até o pujante painel que retrata a vida de Santa Tereza, na Ordem Terceira do Carmo. Como Manoel Ferreira Jácome, uma de suas obras mais representativas é o forro da Igreja de São Pedro dos Clérigos. É curioso pensar que um dos templos mais representativos da tradição barroca pernambucana tenha sido construído por mãos de pessoas pretas e pardas e pouco, ou nada, seja mencionado a esse respeito nas histórias que circulam sobre esses bens culturais.
Além da arquitetura e da pintura, a própria música colonial era marcada pela presença desses sujeitos, como é o caso de Luis Alves Pinto, que teve sua trajetória no Recife entre 1719 e 1789. Segundo o historiador José Neilton Pereira, a vida desse sujeito serve para compreendermos o quanto “a arte musical possibilitou aos negros, índios e mulatos, no contexto laico mercantil dos setecentos [...] diversos e crescentes níveis de liberdade dentro das sociedades escravistas urbanas coloniais das capitanias brasileiras, sobretudo Recife, Salvador e Rio de Janeiro”. Luis Pinto era um virtuoso, sobretudo nas artes da música erudita, que passou a despertar atenção da sociedade pernambucana àquela altura. Chegou a estudar em Portugal por intermédio de amigos que facilitaram a sua ida, onde teve certo reconhecimento público, para em seguida voltar ao Recife como um dos mais proeminentes músicos da Capitania.
Além das próprias mãos, seja na execução de obras magistrais que atravessaram o tempo, seja nas reminiscências de histórias memorialísticas de um talento musical sem precedente, é a existência dessas pessoas no tempo que as conecta ao presente. As relações sociais traduzidas no território trouxeram experiências sociais de longa duração que desembocam nos nossos fazeres culturais contemporâneos. Desde a coroação do Rei do Congo, com seus batuques e tambores, em frente à Igreja do Rosário dos Homens Pretos, nos terreiros de candomblé inicialmente existentes nas áreas centrais do Recife, nas Badias, nas Sinhás, nas Iaiás do Pátio do Terço, nossa história e nossa cultura foram sendo construídas sob diversas matrizes sociais, mas é sobretudo nos legados afro-indígenas que repousam as contribuições mais significativas para a cidade.
É do entrelaçamento entre as culturas materiais e imateriais que surge a cidade, construída a tantas mãos, mãos que também batucam, que compõem canções barrocas, que pintam, que fazem do Recife o Recife. Há, no entanto, um elemento fundamental que quero destacar aqui e que contribui significativamente para compreendermos as lógicas de ocupação da cidade e as suas relações com as nossas celebrações culturais.
Se de um lado essas manifestações culturais tiveram seu berço nas áreas centrais dos centros urbanos, sobretudo nos bairros de São José e Boa Vista, por outro, as dinâmicas de transformações urbanas ocorridas no Recife geraram um deslocamento dessa população, majoritariamente preta e parda, em direção às margens, consolidando as diversas e complexas centralidades culturais do Recife, que subjazem, não gratuitamente, em sua maior parte nas próprias Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS). Durante os ciclos festivos, nos momentos de culminância das festividades o fluxo inverso é feito. O centro da cidade é devolvido a quem de fato o fez e o faz, não só culturalmente, mas em termos de legado cultural.
São milhares de pessoas que, na seriedade das suas brincadeiras, fazem uma cidade se reinventar e se encontrar consigo mesma todo o tempo. A Unesco, ao escolher o Recife para a entrada na Rede de Cidades Criativas, só fez reforçar o que todo recifense já sabia: a cultura é um dos principais vetores de desenvolvimento social e econômico desse lugar. Falar do Recife é falar de cultura, é falar do Brasil.