Quando o antigo encontra o novo no coração do Recife

Capitulo Grandes Obras: Inspiração Recife

Praça Rio Branco, 1988. - Acervo URB/PCR.

O poeta pernambucano Manuel Bandeira, um dos mais importantes nomes do modernismo brasileiro, eternizou no poema Evocação do Recife a imagem bucólica do centro da capital pernambucana na década de 1920, emoldurada pelo Rio Capibaribe, a partir de suas memórias de infância. Um século depois, a escultura erguida na Rua da Aurora em sua homenagem testemunha, em seu lugar, a passagem dos novos tempos.
O Recife é mesmo essa mistura do antigo e do novo, especialmente quando falamos de arquitetura e urbanismo. A cidade, fundada em 1537, respira história ao mesmo tempo que se abre à inovação. Nosso passeio começa pelo Bairro do Recife, o coração da cidade, que já passou por diversas transformações ao longo dos séculos e se apresenta, atualmente, como um vibrante polo econômico, cultural e turístico.
O visitante que chega hoje ao Marco Zero, com sua ampla esplanada, nem imagina que ali, até 1999, havia um panorama completamente diferente. A Praça Barão do Rio Branco era um espaço público mais modesto, com algumas árvores, banquinhos de madeira para contemplação e o busto do seu patrono, escultura em bronze do francês Félix Charpentier, no local desde 1917. Além disso, no centro da praça, havia o próprio Marco Zero da cidade, instalado em 1938 pelo Automóvel Clube de Pernambuco.


Em 1999, uma intervenção urbanística modificou radicalmente a paisagem da praça. O busto do Barão do Rio Branco e o Marco Zero foram realocados para uma das margens. No centro do piso de 7 mil metros quadrados, foi instalado o painel Rosa dos ventos, um grande círculo projetado pelo artista plástico Cícero Dias. A intervenção física e cultural foi inspirada em sua obra Eu vi o mundo... Ele começava no Recife, de 1926, e fez parte das comemorações dos 500 anos do descobrimento do Brasil. O projeto incluiu, ainda, a criação de um museu ao ar livre sobre os arrecifes, do outro lado do rio, com esculturas do pernambucano Francisco Brennand. O museu tem como monumento central a Coluna de cristal, semelhante a um obelisco, com 20 metros de altura.


Plano Haussmann
Demolições do Bairro do Recife, 1911.
O surgimento da Praça do Marco Zero, atualmente ponto de encontro de jovens, artistas, recifenses e turistas, remonta às grandes reformas urbanas executadas no Bairro do Recife de 1909 a 1920. Na época, a Matriz do Corpo Santo, com seu pelourinho, e cerca de 500 imóveis foram demolidos para dar lugar a três grandes avenidas radiais: Marquês de Olinda, Rio Branco e Alfredo Lisboa, nome de um engenheiro que participou das obras de ampliação do porto. A referência urbanística, assim como ocorreu em outras capitais, como Rio de Janeiro e Salvador, era o plano Haussmann, implantado em Paris na década de 1850.
A abertura das grandes avenidas radiais trouxe um clima de belle époque para o centro do Recife, com muitas transformações. A antiga arquitetura colonial saía de cena para dar lugar a edifícios ecléticos, como o do Bank of London & South America, estabelecido em 1912, hoje Caixa Cultural, e o da Associação Comercial de Pernambuco, inaugurado em 1915, ambos com evidente influência francesa por misturarem diversos elementos construtivos. 
Evolução Urbana do Recife. Evolução Urbana do Recife.Evolução Urbana do Recife.

Rua do Bom Jesus
A Rua do Bom Jesus foi a única do Bairro do Recife que sobreviveu às reformas urbanas do início do século XX. Apesar da preservação, suas fachadas seiscentistas acabaram sendo ornadas ao estilo eclético. Essa via foi uma das primeiras a ser edificada na povoação que se instalou na península banhada pelo Rio Beberibe e pelo Oceano Atlântico, ainda nas primeiras décadas do século XVI, guardando até o tempo presente parte do seu traçado original.
Na Rua do Bom Jesus, à esquerda de quem vem pela Avenida Rio Branco, é possível apreciar trechos de calçada em pedra lioz, de origem calcária, que vinha de Portugal como lastro de navios; enquanto restos dessa pedra, provenientes da demolição da Matriz do Corpo Santo, foram utilizados no meio-fio da Rua Vigário Tenório. Com as reformas do início do século XX, surgiram as calçadas com mosaico português estampando motivos decorativos medievais, neoclássicos, art nouveau e modernos, como palmetas, ramagens, emblemas de cartas de baralho, arcos, flechas, liras e flores-de-lis, formando uma verdadeira galeria a céu aberto.
Essa incrível riqueza cultural e arquitetônica levou várias gestões municipais a elaborarem planos de revitalização da antiga zona portuária, tendo a Rua do Bom Jesus como principal cartão-postal. Na década de 1990, foi sancionada a Lei nº 15.840/93, que considerou a área Zona Especial Turística e concedeu diversos incentivos fiscais, como a isenção do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) aos proprietários que restaurassem seus imóveis. Na época, as fachadas dos principais casarões foram revitalizadas por meio de parcerias, e diversos empreendimentos, como bares e restaurantes, foram instalados.

Patrimônio tombado
Detalhe do Paço Alfândega.
Todo o conjunto arquitetônico, urbanístico e paisagístico do Bairro do Recife foi tombado em 1998 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Além do casario, das fachadas e das calçadas, os mais atentos poderão observar, ainda, em diversas ruas, trechos dos antigos trilhos de bondes elétricos, que circularam pelo bairro de 1914 até a década de 1950. Seguindo alguns desses trilhos, chega-se a outras construções e conjuntos arquitetônicos importantes espalhados pela ilha, como o Chanteclair, o Cais da Alfândega e a Torre Malakoff.
A Torre Malakoff foi edificada entre 1853 e 1855, próxima à Rua do Bom Jesus, em estilo bizantino, para ser o observatório meteorológico do Arsenal da Marinha de Pernambuco. E cumpriu essa função por quase meio século, até que, com a Proclamação da República, o Governo Federal decidiu concentrar as atividades do Arsenal no Rio de Janeiro, desativando a unidade pernambucana.
Com essa mudança, e depois de muitas reformas no bairro, as edificações do Arsenal foram sumindo aos poucos, restando atualmente apenas a Torre Malakoff, cujo nome é uma referência ao baluarte que sediou um dos principais palcos da Guerra da Crimeia, o Cerco de Sebastopol (1854-1855), no sul da Rússia. Foi erguida com materiais oriundos da demolição do Forte do Bom Jesus, um dos focos de resistência dos portugueses durante a ocupação holandesa. Seus aspectos militares podem ser observados tanto na fachada quanto na simetria da planta. Nos anos 2000, o monumento foi transformado em espaço cultural.

Tempos modernos em Pernambuco

Recife Moderno - Edifício 13 de Maio, década de 1960.
O bairro que exibe tantos exemplares da arquitetura eclética, neoclássica e até traços árabes também já abrigou um dos grandes ícones da moderna arquitetura pernambucana. O Edifício Luciano Costa, situado em um lote triangular entre a Avenida Rio Branco, a Rua do Bom Jesus e a Rua Dona Maria César, recebeu uma intervenção do arquiteto modernista português Delfim Amorim, em 1959. A construção em estilo eclético data dos anos 1910, tendo sido erguida no contexto da reforma urbana do Porto do Recife com funções comerciais e de serviços.
A ideia de Amorim foi envelopar o edifício com elementos vazados (cobogós), conferindo-lhe uma imagem moderna ao mesmo tempo que preservava a fachada anterior para uma possível restauração futura. O arquiteto, assim, desenvolveu um projeto inovador, em que o ecletismo da construção original dialogava e convivia com elementos modernos. Os panos de cobogós foram retirados em 2006, e a fachada eclética foi, novamente, revelada.
Os cobogós utilizados por Amorim no Edifício Luciano Costa são elementos construtivos genuinamente pernambucanos, criados com o objetivo de facilitar a ventilação e a iluminação, pois uma das grandes preocupações da época era a adaptação das obras às questões climáticas e ao contexto local. Os cobogós foram patenteados em 1929 pelo comerciante português Amadeu Coimbra, pelo importador alemão Ernst Boeckmann e pelo engenheiro pernambucano Antônio de Góes. A junção das primeiras sílabas desses sobrenomes (Co-Bo-Gó) originou o nome da invenção, que se tornou uma das referências da arquitetura moderna no estado.
Esses elementos estão presentes em diversas soluções arquitetônicas desenvolvidas tanto por Amorim quanto pelo carioca Acácio Gil Borsoi, que também se radicou no Recife na década de 1950, outro grande nome da moderna arquitetura pernambucana. Os cobogós podem ser vistos, por exemplo, no Edifício Santo Antônio, no bairro de mesmo nome, e nos edifícios Caeté e Amazonas, no bairro da Boa Vista. No Edifício União, Borsoi misturou os cobogós a outros usos característicos da escola carioca, como o pilotis com colunas em V, amplamente adotado pelo arquiteto Oscar Niemeyer. 
Borsoi acumula, ainda, em seu portfólio obras como o Hospital de Pronto Socorro do Recife (1951), no Derby, atual Hospital da Restauração; o Museu de Arte Moderna do Recife (1955), na Rua da Aurora; o Edifício Sede do Bandepe (1967), no Bairro do Recife, além de diversos projetos residenciais. Outro importante legado deixado por ele foi a concepção da Avenida Boa Viagem, adotando edifícios soltos. Obras como o Edifício Califórnia (1953), o segundo construído no bairro depois do Caiçara, inaugurado 16 anos antes, são emblemáticas na paisagem da Zona Sul. 

Obra aclamada em Nova York
Se queremos falar de arquitetura moderna em Pernambuco, escola que recebeu contribuições de estrangeiros, nativos e profissionais de outros estados, precisamos voltar à década de 1930, revisitando pioneiros como Luiz Nunes e Fernando Saturnino de Brito, autores do projeto do Pavilhão de Verificação de Óbitos da antiga Escola de Medicina, no bairro do Derby. Esse imóvel integrou a exposição Brazil builds: architecture new and old, 1652-1942, lançada em 1943 pelo Museu de Arte Moderna (MoMA) de Nova York. E, desde a década de 1980, abriga a sede estadual do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB-PE).
Vista do Palácio da Fazenda, década de 1940.
Saturnino de Brito também foi autor do projeto da Secretaria da Fazenda, construído entre 1941 e 1945 no bairro de Santo Antônio. Essa obra é icônica porque apresenta uma síntese das propostas modernas, não apenas pelo seu caráter de monumento, mas igualmente por sua inserção no contexto urbano e suas qualidades arquitetônicas. Já Nunes foi responsável por uma série de edifícios públicos importantes construídos em Pernambuco entre os anos de 1934 e 1937, especialmente na área da saúde. Sua morte prematura, no entanto, impediu que suas ideias continuassem sendo disseminadas no cenário local. 
Considera-se, assim, que a arquitetura moderna só começa a se consolidar em Pernambuco a partir dos anos 1950, com Delfim Amorim e Acácio Borsoi, ambos professores do curso de Arquitetura da então Escola de Belas Artes, onde também lecionava o italiano Mario Russo, autor do impactante plano urbanístico para a Cidade Universitária. Entre os projetos mais conhecidos de Amorim, estão os edifícios Pirapama (1956), na Avenida Conde da Boa Vista; o AIP (1956), no bairro de São José; e o Acaiaca (1957), na Avenida Boa Viagem, um dos pontos de referência da orla recifense, marcado principalmente pela fachada revestida de azulejos. 
Tanto Borsoi quanto Amorim continuaram produzindo significativamente nos anos 1960, incorporando novas influências, como o brutalismo. Essa corrente, preconizada pelo francês Le Corbusier, problematiza a necessidade e a função das obras e traz entre seus traços característicos os pilares crus e o visual de construção inacabada. Nessa fase, Amorim produziu obras como o Edifício Barão do Rio Branco (1966), a Residência Alfredo Correia (1969) e o Edifício Duque de Bragança (1970). Já Borsoi, que passou uma temporada estudando na Europa, começou a adotar elementos construtivos tradicionais, como tijolo, madeira e pedra, em contraste com materiais como o concreto armado aparente, as cerâmicas esmaltadas e o alumínio. São marcos desse período os edifícios Guajirú (1962), Mirage (1967), Michelangelo (1969) e Portinari (1969), entre outros.
 

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