Recife 500 Anos

A Necessária Reinvenção da Capital mais Antiga do Brasil

Planta da Cidade do Recife, 1906. - Douglas Fox/Acervo da Compesa.

 por Francisco Cunha

 

O Recife inicia o século XX como uma cidade cosmopolita
O Recife inicia o século XX com uma série de atualidades urbanas que o colocavam no mesmo nível de desenvolvimento urbano não só das principais cidades brasileiras, mas, também, das cidades mais adiantadas do mundo à época.
Exemplo dessas atualidades era a malha ferroviária que servia à cidade, composta de trem urbano a vapor (a “maxambomba”, corruptela da expressão inglesa “machine pump”, considerado o primeiro trem urbano da América Latina) que começou a circular em 1867 e de bondes puxados a burro, depois, elétricos, além de trens interurbanos.
 
Os trilhos cobriam praticamente toda a cidade, inclusive começavam a chegar até a então distante localidade de Boa Viagem, na época uma longínqua praia de veraneio para onde iam, nas férias de final de ano, as famílias que se aventuravam a tomar banhos “salgados”, em substituição aos famosos banhos medicinais de rio que, até pouco tempo atrás, eram a atração dos bairros balneários da Madalena, Poço da Panela, Apipucos, Sertãozinho de Caxangá, dentre outros.
 
Maxambomba na Ponte da Caxangá, início do século XX.
Bonde na Ponta da Boa Vista, década de 1910.
 
Além do transporte público em dia com o que havia de mais moderno no mundo, o Recife implantou também, antes da 1º Guerra Mundial, um sistema de distribuição de água corrente em domicílio e de esgotamento sanitário para praticamente 100% da sua população da época. Esse trabalho foi projetado e gerenciado pelo notável sanitarista Francisco Saturnino de Brito, que, depois de implantar o sistema sanitário de Santos, no litoral de São Paulo, morou no Recife de 1910 a 1918, quando completou sua obra pioneira. Além do sistema de saneamento, Saturnino também propôs um planejamento para a cidade baseado nos princípios de salubridade então vigentes.
 
É dessa época também a reforma do Porto do Recife, coordenada pelo engenheiro Alfredo Lisboa, que promoveu a atualização do atracadouro colonial de desde as origens da cidade — da tecnologia da vela para a tecnologia do vapor, indutora da construção de navios maiores, de maior calado, que demandavam maior profundidade, maior regularidade e metragem de cais. Na ocasião, foi feita a dragagem do canal e foram construídos os novos armazéns servidos por linha férrea. Além da construção dos armazéns, aproveitou-se a oportunidade para realizar uma radical modernização urbanística de inúmeros quarteirões do bairro portuário do Recife, que passou a ter um novo arruamento e novos prédios construídos à semelhança da Paris do Barão Haussmann e do Rio de Janeiro do prefeito Pereira Passos.
 
Reforma do Porto do Recife, início do século XX.
 
Com o porto remodelado e consolidado como um dos mais movimentados do país, seguramente o primeiro do Norte-Nordeste, o Recife consolida também o seu status de local de referência em termos de intercâmbio internacional no que diz respeito às iniciantes vias aéreas, com inauguração da era dos dirigíveis, como foi o caso dos Zeppelins e dos Hindenburgs, que, por mais de sete anos (1930-1937), fizeram na cidade o primeiro pouso na América do Sul, vindos da Europa, antes de se dirigirem aos destinos do Rio de Janeiro e de Buenos Aires.
Tão intenso foi esse tráfego que foi construída uma torre de atracação telescópica (capaz de receber tanto os Zeppelins quanto os Hindenburgs, mais altos) no campo do Jiquiá, atualmente a única ainda existente no mundo.
 
Zeppelin no Recife, década de 1930.
 
Com o bairro portuário (Bairro do Recife) reformulado com construções no estilo eclético, servido por bondes elétricos, cria-se uma referência de cidade que logo requer a expansão para o bairro que fica do outro lado da ponte.
 
 
A “Paris do Nordeste” depois da 2ª Guerra Mundial
Feita a reforma do porto e do bairro portuário do Recife, após o final da 1ª Guerra Mundial, inicia-se uma grande discussão sobre o “embelezamento” do bairro de Santo Antônio, do outro da ponte, que se desenvolveu no local onde foi projetada a Cidade Maurícia (mandada erguer pelo Conde Maurício de Nassau quando da ocupação do Nordeste pela Companhia das índias Ocidentais, 1630-1654) e, depois da expulsão dos “holandeses”, desenvolveu-se a Cidade Barroca, com a construção das igrejas e capelas que são hoje monumentos históricos nacionais (Capela Dourada, Matriz de Santo Antônio, Igreja da Conceição dos Militares, Igreja do Rosário dos Pretos, Basílica do Carmo, Concatedral de São Pedro dos Clérigos, dentre outras).
 Frontispício de tempos católicos do Recife, década de 1950.  Templos Católicos do Recife. Recife: XXXVI Congresso Eucarístico Internacional, 1955.
 
O fato é que a discussão sobre o embelezamento e o “melhoramento” de Santo Antônio foi tão intensa que extrapolou o bairro e se estendeu para o restante da cidade. Diversos urbanistas locais (Domingos Ferreira, José Estelita, Moraes Rego, dentre outros), nacionais (Nestor de Figueiredo, Attilio Corrêa Lima, Ulhôa Cintra) e mesmo internacionais, como foi o caso de Alfred Agache, autor de planos urbanísticos para o Rio de Janeiro e Curitiba, fizeram estudos, sugestões e planos para Santo Antônio e para a cidade.


Imagem: Maquete de construção da Avenida 10 de Novembro, atual Av. Guararapes, década de 1930.
Por essa época também, antes da 2ª Guerra Mundial, o Recife torna-se palco de uma pioneira experiência de arquitetura moderna no Brasil, com a chegada do arquiteto mineiro, formado no Rio de Janeiro na mesma escola de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, Luiz Nunes, e do paisagista Roberto Burle Marx (cuja mãe era pernambucana da família Burle), a convite do então governador Carlos de Lima Cavalcanti (1930-1937). Ambos participaram da criação do Departamento de Arquitetura e Urbanismo (DAU) e, junto com arquitetos e engenheiros locais, dentre os quais Antônio Baltar e Joaquim Cardozo (poeta e posterior calculista das principais obras de Oscar Niemeyer), projetaram e construíram obras que se tornaram pioneiras no país.
São de Luiz Nunes as obras do Pavilhão de Óbitos da Faculdade de Medicina, no Derby; da Caixa-d’água de Olinda; do Hospital da Polícia Militar, no Derby; da Usina de Industrialização de Leite, no Cais José Mariano; dentre várias outras. Já Burle Marx projetou e coordenou a construção do seu primeiro jardim público (Praça de Casa Forte) e de várias outras praças, como a Euclides da Cunha (também conhecida como Praça do Internacional), de Dois Irmãos e do Aeroporto dos Guararapes (Praça Salgado Filho), além de reformas nas praças do Derby, da República e do Arsenal, dentre outras.
 
 Caixa-d'água de Olinda, década de 1940.
Planta da Usina Higienizadora de Leite, primeira metade do século XX.  
 
Terminada a 2ª Guerra, o Recife estava com a Avenida Guararapes construída e com o plano de Ulhôa Cintra escolhido pelo prefeito Novaes Filho para orientar o desenvolvimento da cidade. As atuais radiais (avenidas Conde da Boa Vista, Norte, Recife etc.) e as perimetrais (Agamenon Magalhães, 3ª Perimetral) são decorrentes do plano de Ulhôa Cintra, inspirado no Plano das Avenidas de São Paulo, do qual ele participou da elaboração junto com o prefeito paulistano Prestes Maia. Nessa época e durante toda a década de 1950, por conta dos avanços urbanísticos da primeira metade do século XX, o Recife consolida sua imagem de “terceira capital brasileira”, tendo apenas as cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo à sua frente.
 
Avenida Guararapes, década de 1940.
 
A “Terceira Capital” em torno do Bar Savoy
Quando recebeu o título de cidadão pernambucano em 2003, na Assembleia Legislativa de Pernambuco, Caetano Veloso disse: “Pernambuco entrou na minha vida aos 4 anos de idade através de uma canção de Capiba. Botei o nome de minha irmã por causa dela [Maria Bethânia]. Nós de lá do interior da Bahia olhávamos o Recife como o mundo olhava para Paris”. Ao dizer esta frase, Caetano não estava se referindo ao Bairro do Recife remodelado à moda parisiense, depois da 1ª Guerra Mundial, mas ao bairro de Santo Antônio reformulado no estilo art déco depois da 2ª Guerra Mundial.
IHomenagem a Carlos Pena Filho o Bar Savoy, dezembro de 1960.


Foi, justamente, para esse bairro reformulado que migrou o centro da cidade considerada a terceira capital brasileira de então. Tudo convergia para o entorno da Avenida Guararapes. No bairro de Santo Antônio, situavam as sedes dos poderes Executivo e Judiciário estadual, as sedes dos principais jornais de então (Diário de Pernambuco, Jornal do Commercio, Diário da Manhã, Diário da Noite, dentre outros), o principal teatro (Santa Isabel), os principais consultórios médicos e odontológicos, as principais bancas de advocacia, as principais lojas comerciais (inclusive as mais refinadas da época, como, por exemplo, a Sloper, a Viana Leal com sua famosa escada rolante, a Casa Matos etc.), as sedes dos principais bancos, os principais cinemas da cidade e, até, a partir de 1958, a sede da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), instalada no Edifício JK, na Avenida Dantas Barreto, quase na esquina com a Avenida Guararapes.
Além disso, estavam também na Guararapes e no seu entorno, os principais bares e restaurantes do Recife. O mais famoso deles foi, por certo, o Bar Savoy, onde se reuniam no final do expediente os principais personagens da cidade: profissionais liberais, jornalistas, poetas, artistas plásticos, políticos, funcionários públicos, comerciantes, bancários e banqueiros... Todos em torno dos seus copos de chope, de conversas e sonhos imortalizados pelo poeta Carlos Pena Filho no seu Guia Prático da Cidade do Recife (no poema Chope):
 
CHOPP
Na avenida Guararapes,
 o Recife vai marchando.
 O bairro de Santo Antonio,
 tanto se foi transformando
 que, agora às cinco da tarde,
 mais se assemelha a um festim.
 Nas mesas do Bar Savoy,
 o refrão tem sido assim:
 São trinta copos de chopp,
 são trinta homens sentados,
 trezentos desejos presos,
 trinta mil sonhos frustrados.
 Ah, mas se a gente pudesse
 fazer o que tem vontade:
 espiar o banho de uma,
 a outra, amar pela metade
 e daquela que é mais linda
 quebrar a rija vaidade.
 Mas como a gente não pode
 fazer o que tem vontade,
 o jeito é mudar a vida
 num diabólico festim.
 Por isso no Bar Savoy,
 o refrão é sempre assim:
 São trinta copos de chopp,
 são trinta homens sentados,
 trezentos desejos presos,
 trinta mil sonhos frustrados.


Em torno de Carlos Pena Filho, frequentador assíduo do Savoy e das suas mesas, reuniram-se, com certeza, Gilberto Freyre, Joaquim Cardozo, Mauro Mota, João Cabral de Melo Neto, Ariano Suassuna, Waldemar de Oliveira, Ascenso Ferreira, Renato Carneiro Campos, Hermilo Borba Filho, Cesar Leal, Josué de Castro, Austro Costa, José Lins do Rego (intelectuais e poetas); Francisco Brennand, Lula Cardoso Ayres, Abelardo da Hora (artistas plásticos); Miguel Arraes, Pelópidas Silveira, Celso Furtado, Artur Lima Cavalcanti, Castelo Branco (políticos); Capiba, Nelson Ferreira (músicos); Assis Chateaubriand, Aníbal Fernandes, F. Pessoa de Queiroz (jornalistas); e muitos outros.
Para se ter uma ideia do clima da época, conta a lenda que, quando da visita ao Recife do casal Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, na década de 1960, ocorreu um episódio pitoresco. Tendo Simone sido vítima de uma doença tropical, contraída na visita que fizeram à Amazônia, e estando internada num hospital da cidade, só restou ao filósofo dar um esticada ao principal point da época. Quando chegou ao Savoy, foi uma festa. Afinal, tratava-se do mais conhecido filósofo do mundo, casado com uma escritora de renome mundial. Como a visita repetiu-se nas noites seguintes, chegou numa delas que, quando alguém avistou Sartre chegando, teria dito: “Disfarça, que lá vem aquele chato do Sartre de novo!”.
 

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