Recife Tem Encantos Mil

Por Bráulio Moura, turismólogo, historiador e especialista em História do Nordeste

Vista para a cidade do Recife. - Dondinho/PCR.

Em nosso livro, Inpiração Recife além de explorarmos histórias inspiradoras das empresas parceiras, também contamos com a ajuda de profissionais, históriadores e geografos para contar a história da nossa amada cidade. Desfrute agora da parte um do capitulo Recife Tem Encantos Mil, por Bráulio Moura.

Entender uma cidade e suas nuances nem sempre é fácil, tanto para turistas quanto para moradores, especialmente em um lugar como o Recife, que se espalha em planícies, rios, mangues, morros, becos, travessas e largos cheios de histórias e invenções. A capital de Pernambuco é a mais antiga cidade entre as capitais brasileiras e será a primeira a completar 500 anos. Ao longo dos seus séculos de existência, deu glórias a Pernambuco e ao Brasil, provocando em seus moradores um fenômeno único no mundo, em uma mistura de ufanismo, amor e folclore, que transita entre os fatos históricos e a fantasia de linhas retas e de rankings imaginados na tão querida América Latina.

Entre as muitas coisas inauguradas aqui, o Recife teve o primeiro guia turístico do Brasil: o Guia Prático, Histórico e Sentimental da Cidade do Recife, de Gilberto Freyre, que já mostrava ali que a cidade não se entrega de cara ao visitante, não é de amores fáceis. Ela pede que se penetre, que se explore, se aventure. Em troca, devolve muitas surpresas, presentes inesperados e histórias com enredos emocionantes que poderiam fazer dela um país. São personagens que povoam o imaginário local e nacional, além das paisagens que, aqui e ali, se transformam e se complementam em memórias de orgulho ou de lamento.
Percorrer o Recife é se entregar às paixões. Paixões que transbordam em fervor nos passos do frevo, no grito das torcidas de futebol, nos pregões do comércio popular e nos apitos de doce japonês. Ainda mais, nas bandeiras do estado e da cidade estampadas em camisetas, cangas e mochilas, nos sinos das basílicas e catedrais, nas alfaias e atabaques da força afro que alimentam a alma das ruas, no passinho do brega ou no refrão do bloco lírico que ecoa das gargantas: “o Carnaval melhor do meu Brasil”.
Tudo nessa cidade é único. Algumas características chegam a criar comparações e apelidos como “Veneza brasileira” ou ainda “Florença dos trópicos”. Apelidos estes refutados por alguns que dizem que Veneza é o Recife italiano, e não o contrário. A paisagem plana e de horizontes vastos impressionou a muitos. A extensa linha de recifes de arenito que formam as piscinas naturais de águas mornas de Boa Viagem segue até o Porto do Recife. É dela que se fez possível uma cidade onde, como diz Carlos Pena Filho, “plantaram seus flancos e levantaram seus muros”, inventando um lugar a partir dos sonhos. Ali, nas águas protegidas das ondas bravias e da fúria de Netuno, marinheiros, pescadores e carregadores se instalam numa faixa de terra com o mar de um lado, o rio do outro e a imaginação sobre tudo.


Praia de Boa Viagem.


Repleta de rios e canais, Recife se encheu também de pontes, que interligam as paisagens, as ilhas, os bairros, sítios, antigos arrabaldes, morros e comunidades. Pelos rios, os manguezais que resistem e se regeneram, filtrando águas e abrigando animais. Ainda no centro da cidade, a qualquer momento, se veem bandos de garças brancas, garças-azuis, socós, savacus-de-coroa, gaivotas, andorinhas e aves diversas que dão um espetáculo de revoadas sobre o Capibaribe. Na maré baixa, ainda no centro, o caminhante atento verá o movimento dos chiés, ou caranguejos chama-maré, como também são conhecidos, em sua dança sobre a lama, oxigenando a terra e o bioma. Em meio a estes, passam apressados aratus, caranguejos-uçá e, das redes de tarrafa jogadas das pontes por pescadores, siris que também povoam as águas que passam nos arredores da cidade velha.
Seguindo o curso do rio e em plena zona urbana, é possível se deparar ainda com famílias de capivaras, mamíferos que deram nome ao principal rio da cidade, o Capibaribe, rio das capivaras. Elas caminham indiferentes pelas margens nos bairros da Jaqueira, das Graças, da Madalena e Parnamirim. Sem muita dificuldade, é possível também se deparar com jacarés nessa cidade anfíbia e aquática, que desfila entre o doce e o salgado.


Rio Capibaribe


Das ilhas, rios e planícies, a capital encontra os seus morros, hoje densamente povoados com vistas que descortinam realidades e diferenças a partir de seus mirantes e escadarias. Uma celebração e renovo da força cultural que se multiplica por cada beco, com símbolos e tradições, inovações, fé, devoção e festa.

Um passado cheio de histórias

Panorama do Recife, início do século XIX.  


A paisagem clara de luz tropical foi cenário de uma das mais fascinantes histórias. A quieta povoação de pescadores viu, ainda no século XVI, o ataque de piratas e corsários, liderados por James Lancaster. O inglês, com bom aparato de armas e mercenários, consegue aterrorizar o Recife e dali levar coisas que figuravam entre as mais valiosas do mundo naquela época: açúcar, pau-brasil, sedas, especiarias estocadas nos armazéns sob a proteção de São Frei Pedro Gonçalves e das pedras dos arrecifes. O butim financiado pela rainha da Inglaterra Elizabeth I e pelo prefeito de Londres em 1595, é conhecido como um dos maiores da história da pirataria e o maior de todo o reinado da “Rainha Virgem”.
Pouco tempo depois, na primeira metade do século XVII, a cidade vê a chegada dos holandeses que ali se amontoaram até o aporte do Conde Maurício de Nassau e sua comitiva de cientistas, artistas, arquitetos e engenheiros. Muralhas, portas, fortificações, jardins, palácios, pontes. Uma cidade surgia como um grande centro político, cultural, financeiro e social, capital do domínio flamengo: Mauritsstadt, a Cidade Maurícia, Mauricéia, “tecida de claridade, plantada à beira do mar”.

Torre Malakoff.


Durante a presença flamenga, especialmente no governo de Nassau, teve o Recife um surto de crescimento e de inovações nunca vistas nesta parte do mundo: um observatório astronômico, jardim botânico, jardim zoológico, palácios portentosos, canais, a primeira sinagoga das Américas e a primeira ponte de grande porte, palco do lendário episódio do Boi Voador. Junto a ele, pintores como Albert Eckhout e Frans Post tentaram captar a luz de Pernambuco e as cores do céu, das folhas, dos animais e das pessoas. A partir disso, a grande cidade teve um caminho sem volta de crescimento. Enquanto Olinda se recuperava a passos lentos, o Recife seguia expandindo seu território e crescendo também em poder, sendo cenário da Guerra dos Mascates e da Revolução Pernambucana de 1817. Logo se tornaria a capital de Pernambuco, despontando no Brasil com ideias republicanas, abolicionistas e de desenvolvimento. Os trens e bondes facilitaram o trânsito entre os bairros e a grande metrópole. Hoje é também sede de um dos maiores parques tecnológicos do país, o Porto Digital, instalado bem ali, onde tudo começou, no Bairro do Recife.

Arquitetura, cores e sabores

Praça de Casa Forte, projeto de autoria do paisagista Burle Marx.


É nessa paisagem rica em histórias que, entre um bairro e outro, estão as praças de Burle Marx — a primeira projetada por ele, inclusive. Com desenhos de bancos curvos e vegetações de diferentes biomas do país, as áreas de lazer servem também como espaços pedagógicos e nos ensinam sobre a Mata Atlântica, a Caatinga, o Cerrado e a Amazônia. Na Praça de Casa Forte, as vitórias-régias dão o tom e o apelido ao local, com direito a uma grande festa ao ar livre com feira de comidas, quermesse, apresentações artísticas e o convívio das famílias dos arredores. Da genialidade do paisagista, filho de mãe pernambucana, o Recife conta ainda com as praças Euclides da Cunha, Faria Neves, Salgado Filho, Derby e República.

Praça da Independência.
Além das praças e parques, o Recife possui muitos mercados. Diferentemente da maioria das cidades, ou de todas, a capital não possui um único mercadão central. Por aqui, há mais de 20 mercados públicos e seis deles se destacam pela beleza arquitetônica e variedade de comércios, artesanatos, manifestações culturais e gastronômicas. Com essa quantidade de mercados, temos o mais antigo do país, que desde o século XVI, no mesmo local, possui como principais produtos os frutos do mar frescos. A antiga Ribeira dos Peixes se modernizou no século XIX e teve também o privilégio de ser o primeiro edifício em ferro pré-fabricado do Brasil, mudando de nome para Mercado de São José. Nele, uma grande sorte de peixes, crustáceos, artesanatos, souvenires, utensílios domésticos, ervas medicinais para chás e banhos de descarrego, além de objetos religiosos e uma mistura de cores, sons e cheiros, denunciam ali a combinação de culturas que forma a cidade.

Mercado de São José.


São José é o símbolo da diversidade de mercados do Recife. Além dele, é imperdível admirar a estrutura de ferro do Mercado de Casa Amarela, os arcos do Mercado da Boa Vista, a arquitetura neocolonial do Mercado da Madalena, o art déco da Encruzilhada ou, ainda, o movimento do Mercado do Cordeiro. Em cada um deles, é possível encontrar uma variedade de cores e sabores, temperos, insumos, frutas e verduras que dão o tom da gastronomia local. Há, ainda, as frutas tropicais e as aclimatadas pelos portugueses, que encontraram aqui solo fértil, e — de tão bem adaptadas — há quem jure de pé junto que são nossas.
Entre as aclimatadas, as mangas e suas variedades vendidas nos tabuleiros: manga-espada, manga-rosa, manguito, manga-jasmim, manga-Itamaracá, manga-Maranhão, e as mais modernas, Tommy e Palmer. As jacas moles e duras, que exalam perfume e resultam em doces com calda, figuram entre as preferidas. Pimentas e ervas se misturam com as frutas da época numa aquarela de sabores das bancas de feira: araçás, jabuticabas, cocos dendê, umbus, umbus-cajá, abacaxis, abacates, sapotis, jenipapos, frutas-pão, pitangas, pitombas, cajás, seriguelas, cajus amarelos e vermelhos.
Impossível ficar de fora aquela que é unanimidade entre sucos e sorvetes: a acerola. A pequena fruta cítrica originária das Antilhas entrou no Brasil por Pernambuco, através da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), e se espalhou por quintais, pomares, plantações e mesas com suas propriedades de vitamina C e seu sabor único, sendo utilizada até em molhos para pratos salgados.
Entre as verduras, uma que não falta nas receitas locais é o coentro. Essa erva mediterrânea de sabor forte é presença certa nos pratos recifenses e quase sempre se vende acompanhada por maços de cebolinha.

Gastronomia

Praia de Boa Viagem.


A gastronomia do Recife é um espetáculo à parte e traz marcas únicas que representam a mistura de culturas que formaram a cidade. Que outro local oferece caldinhos para se tomar à beira-mar? Essa iguaria, um símbolo das praias locais e que não pode ser confundida com sopa, é quase um item obrigatório no cardápio de bares e restaurantes. Podendo ser de feijão, de peixe, de camarão ou de caldeirada, combina com cerveja gelada, com a brisa do mar, com o calor e com o banho salgado nas piscinas naturais. Na praia, ainda não podem faltar o queijo coalho assado com mel de engenho, o camarão de bacia e os caranguejos.

Pescadores no Rio Capibaribe.


Como uma boa cidade litorânea, há fartura de pratos à base de frutos do mar e do mangue. Mariscadas e caldeiradas, sururu e siris são servidos nos bares populares e restaurantes refinados. A peixada pernambucana é um diferencial local: peixe mergulhado num molho espesso com legumes e ovos acompanhado de arroz e pirão. Da mistura de povos e adaptações locais, também se criou por aqui o cozido pernambucano, um prato de domingo, que reúne famílias e amigos em torno de uma farta panela com carnes, chambaril, legumes, milho, banana-da-terra e pirão. A lista segue infinita com os arrumadinhos de charque e carne de sol, escondidinho de charque, sarapatel, buchada de bode, galinha à cabidela, feijão-verde e o feijão-mulatinho “adubado” com charque, osso de patinho, linguiça, quiabo, maxixe e muito jerimum.


Fachada do Restaurante Leite.


Como cidade que se fez do açúcar, os doces também são uma marca da cultura local, alguns registrados como patrimônio imaterial de Pernambuco. Das goiabas que nasciam na Mata Atlântica, nasceu o bolo de rolo, uma adaptação de receita portuguesa que substituiu a pasta de amêndoas pela fruta tropical, aperfeiçoando a massa e a forma de enrolar, muito fina e delicada. Ganha um inimigo quem disser no Recife que bolo de rolo é rocambole. Do açúcar também nasceu o bolo Souza Leão, uma receita de família batizada pelo Imperador Pedro II, que também se tornou um patrimônio estadual. Um bolo com massa de macaxeira, muitos ovos e açúcar que, de tão cremoso, parece um pudim. Ainda no rol dos patrimônios, a cartola é também um cartão de visitas local e oferece, a quem se aventura no paladar, bananas fritas, uma generosa fatia de queijo de manteiga e cobertura de açúcar e canela, servida em lanchonetes ou no Restaurante Leite — o mais antigo do Brasil, que está no Recife desde 1882 no bairro de Santo Antônio, no centro da cidade.

 Estação Central do Recife.

Estação Central do Recife.
Da presença inglesa no século XIX, ficaram de legado belas estruturas arquitetônicas, como a Estação Central, a mansão Henry Gibson, o Cemitério dos Ingleses, o gosto pelo futebol e pelo uísque (o Recife é a cidade com o maior consumo de uísque per capita do mundo, de acordo com a revista The Whisky Magazine). O Recife também herdou dos britânicos o gosto por bolo de frutas. Como tudo aqui se reinventa e ganha cara própria, o bolo de frutas inglês, cheio de frutas vermelhas, cerejas e vinho do Porto vai ganhar substituições mais acessíveis. Tiveram os pernambucanos a brilhante ideia de trocar as caras e importadas berries por frutas cristalizadas e ameixa. O vinho do Porto foi substituído por moscatel, criando uma massa densa, escura, de forte sabor que passou a ser presença certa nos casamentos locais. Mudou de nome para “bolo de noiva”, e a massa escura recebeu uma cobertura de açúcar, tão alva quanto o vestido da noiva, contrastando com o seu interior. De tantos casamentos, pensou o pernambucano ser um bolo universal, descobrindo depois que é só aqui que tem, sendo mais um candidato à lista de patrimônios imateriais no quesito gastronomia.
Na oferta de doces, o Recife tem, ainda, em suas ruas, feiras, mercados e receitas familiares, o doce japonês, reconhecido de longe pelo anúncio da gaita. Quebra-queixo vendido em tabuleiros de alumínio separado por sabores: coco, batata-doce, goiaba, amendoim, castanha. Cavaco chinês, ou cavaquinho, com o indefectível triângulo do vendedor; passa de caju; cocada; coquinho queimado; coco caramelizado; doce de mamão com coco; bricelets feitos por mãos delicadas e devotas das freiras beneditinas; alfenins; filhoses; fininhos (torrões de açúcar com erva-doce embalados em cones coloridos) vendidos essencialmente na Festa do Morro da Conceição e pirulitos de açúcar “puxa-puxa” compridos pendurados nas tábuas perfuradas em embalagens brilhantes.
Pelas ruas da cidade, o apreciador de comidas tradicionais encontrará ainda os acarajés, que aqui estão mais próximos da comida sagrada do candomblé do que os famosos recheados com vatapá e caruru. Pelas esquinas, apenas o bolinho de feijão frito no dendê coroado por um camarão seco ou por uma piaba. A piaba é também apreciada frita e chamada por nomes curiosos, como “coitadinha”, “arromba-navio”, “mamãe-me-dá-dois” ou “pior sem ela”. Nas mesmas bancas de acarajé se vende a passarinha, baço do boi frito muito apreciado como tira-gosto, e peixes fritos, além das clássicas tapiocas e milhos cozidos. Nos parques, praças e estádios de futebol, ainda é possível se ver o rolete de cana: cana-de-açúcar cortada em rodelas e espetadas em palitos, como um buquê de flores.
 

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