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A liturgia da energia estéril de cada dia justifica a diversidade da crise

Inspirado no "ócio criativo" de Domenico de Masi, arrisquei-me no texto passado a traduzir uma intuição particular, que chamei de "teoria da energia estéril". Expus, preliminarmente, todo esforço inútil dedicado a teses negacionistas e/ou ofícios inapropriados, justo em áreas críticas como saúde pública, economia, política e setor social, fatos sem precedentes na história do país. Diante da consumada ausência de uma reação pública combativa, entendi que o melhor remédio contra a energia estéril seria o ócio criativo, talvez até como ensaio estratégico para admissão noutro modelo de desenvolvimento.

Hoje, fujo do convencional e me concentro na citação do tanto de energias desperdiçadas em cada setor crítico, com erros e omissões insistentes. De modo objetivo, a sequência de registros é bem conhecida. Dou-lhe apenas sentido de alinhamento.

No âmbito da crise sanitária, destaco: a) a minimização da agressividade do vírus (gripezinha); b) a crença inicial numa baixa contaminação; c) a defesa posterior favorável a uma inescrupulosa "contaminação de rebanho"; d) a aposta no tratamento precoce, apesar das orientações científicas contrárias; e) a defesa pela negligência na comunicação sobre a pandemia (após a saída do Ministro Mandetta); f) a contestação dos números e o recuo na difusão dos mesmos (um consórcio da imprensa assumiu a função); g) a falência na gestão da pandemia (4 ministros); h) a postura pública inicial como de um governo antivacina; i) o posicionamento  posterior como de um governo seletivo com relação às vacinas (critério ideológico); j) a decisão final atrasada pela compra das vacinas; e, l) as suspeitas de irregularidades nas novas compras de vacinas. Conclusão 1: ausência plena de liderança e planejamento, nas distintas estratégias que cabiam para o enfrentamento da pandemia.

No âmbito da crise econômica, os fatos relevantes são: a) a enganosa "venda política" de um governo liberal; b) a gradativa perda dessa identidade ideológica; c) a falha propositiva do projeto de privatizações como fator de redução do endividamento; d) a fragilidade no conteúdo dos projetos das reformas enviados ao Congresso; e) a incapacidade de negociação política em torno dessas reformas; f) o despreparo para os desafios econômicos derivados da pandemia; g) a perda dos controles fiscais, monetários e cambiais; h) a retomada da inflação; i) os riscos de descontrole orçamentário por conta de pressões populistas; j) o colapso no abastecimento de água; e, l) a renovação da crise energética, com sérios riscos de apagão. Conclusão 2: sem planejamento para mirar até mesmo o curto prazo (a visão estratégica para o longo prazo é nula), a economia já se encontra em marcha lenta, com cenários desfavoráveis para 2021.

No campo político, os fatos são: a) o foco na reeleição desde o primeiro dia do governo; b) as crises instintinas motivadas pela exacerbação das teses do núcleo ideológico; c) a crise inicial de articulação política e posterior alinhamento com o antes combatido Centrão; d) a arrogância e o absolutismo no trato com os demais poderes; e) a prevalência dos impulsos autoritários e populistas; e, f) a aposta permanente nesses conflitos institucionais, num esforço inútil para vender uma imagem anti-establishment. Conclusão 3: a frequente instabilidade política não só alimenta a dimensão plural da crise, como põe sob risco o estado democrático de direito.  

Por fim, os dramáticos registros que acenam para o caos social são: a) a aposta inicial a favor da negligência em torno de uma política social efetiva; b) a aceitação de alguma forma de política social só aconteceu com o drama decorrente da pandemia: c) a confirmação de uma piora nas estatísticas do desemprego; d) o registro inevitável do aumento dos níveis de pobreza; e, e) a retomada preocupante da fome. Conclusão 4: está consagrado um novo flagelo social, com riscos iminentes e preocupantes de uma convulsão indesejada.

Vistos tantos itens de energia estéril, entendo que a maior das certezas é aquela que a História irá destacar como o momento mais crítico vivido pelo país, pelo menos, no lastro de um século. Daqui para frente, defendo exercitar uma sugestiva e anestesiante criatividade nos exercicios de ócio, que ratifique minha intuição de que tal aposta será bem mais útil. Quem sabe, assim, a sociedade terá mesmo o ensaio por um país melhor. 

Insistir na energia estéril é se manter no erro de crer num país que ainda vislumbra um grande futuro no seu passado.

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