Agenda liberal: protocolo de contradições e frustrações
Um dos principais vetores da conquista eleitoral do governo foi o seu compromisso com uma agenda econômica liberal. Uma demonstração cabal dessa disposição decorreu da própria escolha do nome de Paulo Guedes, ainda no clima de campanha eleitoral, como conselheiro econômico. Além da sua excelência técnica e empresarial, Guedes sempre foi reconhecido como um prócer das ideias liberais. Conceito validado tanto na hermética academia (apesar da sua brevidade como docente e pesquisador), como no ambiente dos mercados.
Diante dessa prévia condição, a investidura de Guedes no cargo de ministro ainda lhe deu mais robustez. Há dois aspectos que me garantem essa tese. Primeiro, porque a percepção do ambiente econômico naquele momento, ajustado pela equipe de Temer, sinalizava para uma guinada a favor das ideias liberais. Se não fosse de modo pleno, por algum viés parcial. Depois, porque o ministro conquistou uma confiança tal, que isso lhe propiciou uma forte autonomia para a montagem da megaestrutura do seu ministério e da sua equipe. Vem daí uma associação que se fez bastante difundida, ao tê-lo em conta como aquele posto de combustível, cuja peça publicitária dizia que nele "tudo se encontrava e se resolvia".
No entanto, vale aditar que esses não foram os únicos méritos que lhe couberam. Por conta desses condicionantes, o legado mais significativo foi deixar claro o alinhamento das ideias econômicas com o compromisso político em assumi-las, o que contribuiu bastante para o êxito eleitoral. Assim, o candidato eleito presidente, diferente do seu currículo nacional-intervencionista, assumiu publicamente seu revisionismo pelos ideais liberais. No primeiro momento, uma postura que carimbou a força de Guedes, como idealista técnico e conhecedor dos anseios do mercado. Restou aí o simbolismo da dúvida para o tal racionalismo econômico: realismo ou pragmatismo? Assim, restaria ao tempo passar esse atestado.
Após dois anos e uma cruel pandemia a tiracolo, parece-me válido considerar uma máxima de Victor Hugo: "nada mais forte que uma ideia, cujo tempo já chegou." Neste caso, não chegou. Afinal, sua implacável precisão costuma ser uma carta incisiva em análises desse naipe. O que se assiste diariamente é um conjunto inseguro de ações e reações governamentais, em movimentos ziguezagueantes. Pior: o pêndulo das políticas se mostra impregnado de irracionalidades variadas. Mais precisamente, os agentes econômicos se sentem como hamster de laboratório, entre a vida ou a morte. Isto é, com as reformas econômicas terão sobrevida. Ou então, sem reformas e alguma pílula de conforto do receituário liberal, irão para o cadafalso da forca.
No cenário atual, parece que Guedes está quase sob rendição nas cordas do ringue. O pragmatismo daquele discurso inicial foi superado por um novo tempo, ditado não só pela real essência do comandante. Afinal, este também se rendeu ao jogo político dos velhos escambos, onde a pressão por gastar além da conta, retira do pensamento liberal do seu ministro, um pilar de sustentação. Claro que aqui não se omitem os necessários e prioritários gastos com saúde pública, pela razões óbvias. O viés é outro. No entanto, ao final desse enredo, percebe-se que muito além das contradições, o protocolo de uma agenda liberal só trouxe frustrações, justo para os que dela esperavam alguma mínima instrumentalização.
Diante de tanto ensaio pirotécnico em torno dessa agenda, fico aqui imaginando como seria a reescrita do livro "Reflexões do Crepúsculo", de Roberto Campos (avô do presidente do BACEN). Certamente, que estaria a lamentar a perda de outra onda sincrônica em torno de uma política liberal, conforme o tom daquela obra. E retomaria aqui a "demonologia" da ambivalência e do escapismo, algo que tem pautado a politica e a economia no Brasil.
Concluiria Campos: "desejar o crescimento e praticar tudo diferente a tal objeto é insistir nas eternas desculpas para não se executar as reformas econômicas". Faz sentido.