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Carta e morticínio: a economia à beira de um ataque de nervos

Ilustração: Hugo Carvalho / Editoria de Arte/ Folha de Pernambuco

Nesses dias sombrios, seja na mídia ou no meio social, nada oriundo da economia foi mais marcante do que a "carta dos 500". A elevação dos juros e dos preços de algumas commodities, bem como, o isolamento político da equipe econômica, todos  perderam fôlego e se tornaram temas secundários. Nem mesmo a pauta social correlata mereceu o espaço importante que lhe cabia. Foi o caso do veto presidencial para o programa de investimentos de acesso à internet nas escolas públicas. Como foi também a própria demora para reaprovar o auxílio emergencial. A carta roubou a cena e se mostrou como "sua excelência o fato". 

Na essência, ela representa um manifesto  da cena econômica, que cobra mudanças de postura na condução política da crise sanitária. Algo proposto numa convergência de opiniões emitidas por agentes de diferentes funções e pensamentos. Surpresa e impacto. 

No primeiro plano, o relevante está em reunir, quantitativa e qualitativamente, tantos nomes de expressão na economia. Em uníssono, defenderam uma manifestação que desmoronou a tese da prevalência econômica diante da prioridade da pandemia. No segundo plano, por mais que o manifesto seja uma reação temporal atrasada, o fato é que ele não deixou de impactar pelo peso da origem e o equilíbrio propositivo. 

Penso que esse fato e o aceno paralelo de empresários pela defesa de uma sólida política social podem ter servido como alerta político. Algo a relevar, após um ano de negacionismo pleno e às vésperas do trágico registro dos 300 mil óbitos. Permito-me assim dizer, que a "carta dos 500" serviu como um libelo que deu voz a um setor da sociedade diante do "morticinio dos 300". O duro momento nacional não passou incólume, sem que cobranças mais rijas surgissem. Se os brutos também amam, não há como esconder que aqueles frios agentes econômicos também surtam. Paciência do lado de cá e negligência do lado de lá têm limites. E os nervos ficam à flor da pele.

Considerado o significado da carta, causou espanto reações contrárias advindas de opiniões ideologizadas ao extremo. Da ala à direita, nada tão surpreendente, pelo histórico de negacionismos e contradições. Nesse grupo a contestação derivou do desdém de quem sempre se alimentou do discurso abstrato do anti-sistema. Atitude que serviu para questionar a presença de nomes que dizem ser do "establishment", na defesa de um falso "novo" que se nutre de um discurso estéril. No outro extremo, seguindo seu evangelho ideológico, a reação adveio na forma de críticas à "elite do pensamento neoliberal", como "coisa de gente do mercado". Houve algo pior, que só acirra o divisionismo, nesses tempos onde se exigem esforços comuns. Por serem alguns signatários do topo da casta de renda superior, os críticos deflagraram outra narrativa sobre a carta.  Uma vez que o colapso da pandemia iguala os cidadãos no acesso às demandas do sistema de saúde, defenderam que a assinatura foi resultado da preocupação de uma elite acostumada nos seus privilégios. Nada mais infeliz por se dizer num momento de foco na unidade nacional.

O certo é que a crise impõe reflexões que olhem para frente. Tornou-se insustentável crer que, nesse longevo ensaio civilizatório de nação, o que não "acaba em pizza", consagra-se como embate político. Essa politização generalizada do discurso não contribui para o enfrentamento de nenhuma crise. Ainda mais quando se trata de uma pandemia que será à frente revista e julgada pelas lentes da História. Nisso, restam duas incongruências que revelam e tipificam o caráter nacional: excesso de contradição e falta de ética. O brasileiro que reclama e protesta no varejo é o mesmo que trai e tergiversa no atacado. Implacável realidade.

Sou do grupo que ainda aposta num "paradigma de civilização tropicalizado", com cara de Brasil. Mas admito que essa má conduta carece de solução geracional, onde a superação do contraditório e da fraqueza ética levará tempo. O brasileiro precisa se ver no espelho e abandonar seu realismo histórico de se sentir sempre o outro. 

Creio que os malefícios dessa crise podem nos ensinar a evoluir diante dos ataques de nervos e da dependência psicotrópica instados pelas falhas políticas e pelos exageros de governos populistas. Isto é romper com a inconsequência de uma distopia.Tanto tempo depois, é preciso que a nação inicie desde já a construção da sua referência civilizatória - uma espécie de utopia realista. Valerá a pena tentar.

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