Em 3D: a recordação é a esperança do avesso
O título deste texto representa uma frase de Gustave Flaubert. Reconhecido como um dos maiores da literatura francesa do século XIX, ele foi a principal referência do realismo. Adiciono à expressão um complemento do mesmo autor, mais enfático e oportuno: "olha-se para o fundo do poço como se olhou para o alto da torre". Como a metáfora de uma roda-gigante, o mundo cria situações distintas e faz com que as mais inspiradoras recordações se revelem na forma de esperança no avesso.
Arrisco-me a dizer que o propósito foi intencional. No bojo de tantas adversidades políticas, econômicas e sociais que o país tem enfrentado, em especial, a partir de grandeza doída dessa pandemia, ressalto aqui duas preocupações conjunturais e uma estrutural. São três dimensões distintas(por isso, aqui intitulei de 3 D), onde nelas próprias convivem contradições. Se o desafio da esperança pode ser buscado e ele se espelha no avesso da situação atual, o objeto do meu intento está posto e exposto. Se isso não resolve a questão, que sirva de estímulo, de vigor, ou mesmo, de mais esperança.
> DOS "NOVOS RICOS" AOS "NOVOS POBRES". Aqui expresso uma das duas dimensões conjunturais, cujo problema se exponencializa à medida que a pandemia perdura. Há duas décadas o país comemorava em seu ambiente econômico uma melhora no padrão distributivo da renda. Não só na base da pirâmide, como na mobilidade entre os estratos, a ponto de se apontar para o surgimento de uma casta de "novos ricos". Não obstante o contexto prévio e deletério de uma economia claudicante, em uma ano de pandemia já se verificou a piora nesse mesmo quadro distributivo. Independente da eterna questão do desequilíbrio fiscal, a negligência de se manter o auxílio emergencial, a demora pela sua revalidação e o valor irrisório, tudo isso consagra uma imensa vulnerabilidade sobre o tecido social. Os "novos pobres" passaram a ser uma realidade da cena cotidiana, vitimados pela falta de empregos e pelo risco iminente da fome. Ações públicas efetivas e redes privadas de solidariedade são imperiosas. A esperança do avesso é o caso.
> O MUNDO FORA DOS PLANOS: REDONDO E GLOBAL. Nesta segunda dimensão conjuntural, a urgência está na revisão dos planos com relação à forma que o governo brasileiro, através da sua política externa, enxerga o mundo. Não cabem mais manifestações conspiracionistas, isolacionistas e negacionistas que fazem parte de uma ideologia histérica nos argumentos e estéril nos resultados. O plano maior é abandonar as energias gastas a favor desse golpe contra as ciências, que prega desde a defesas do terraplanismo ao exagero do nacionalismo. O mundo é redondo e global. E assim se desenvolveu há séculos, desde quando as grandes navegações provaram não só a esfericidade terrestre como a relevância do comércio exterior. O mero exemplo recente do encalhe de um navio no canal de Suez, mostra bem a força da dependência do que é hoje uma economia global. Cabe nova esperança, nesse exercício de recordação.
> O EDUCADOR E A EQULIBRISTA. Aqui o contexto é estrutural. Uma questão de prioridade pública inacabada, que resiste ao tempo. Substitui o jeito trôpego do imortal Carlitos do cinema, simbolizado pelo "bêbado trajando luto" da música imortalizada, pela figura renitente do educador. Faço isso pela genialidade de Chaplin, por sempre crer na esperança. Nessa metáfora, a virulência que deu sentido à pandemia também asfixiou a frágil educação brasileira. Por mais motivos de negligências públicas uma geração pode ter seu desenvolvimento cognitivo comprometido. Se pelo histórico crítico não há grandes motivos para se recordar, que caiba pelo menos a esperança chapliniana de crer num novo paradigma que seja obsessivo e incisivo a favor da educação.
Bons temas que irei me aprofundar nos próximos textos.