Inflação "Made in Brasil": Histórias do Velho Moinho
Numa das suas mais belas canções, o saudoso Cartola pedia atenção e dizia algo assim: "que o mundo era um moinho, capaz de triturar sonhos e de reduzir a pó as ilusões". Uma analogia que suscita variadas inspirações.
De fato, embora tal mensagem fosse original e melodiosamente guiada por uma decepção amorosa, faço uso dela como uma inspiração respeitosa. Assim consigo também enxergá-la por lentes que me levam a outro modo de desencanto. Por esse caminho, permito-me trazer à luz da ribalta um velho conhecido da economia brasileira: o "fantasma" da inflação.
As novas gerações não têm ideia do que foi a convivência com essa "assombração", capaz de estabelecer uma elevação diária nos preços dos produtos. Tinha-se uma situação onde a menor disponibilidade de dinheiro que se tivesse em mãos, ou perdia valor ou carecia de uma correção na virada da noite para o dia. O chamado "overnight" era o sinônimo de uma necessária proteção anti-inflacionária, diante do risco das perdas.
Até recentemente, a mera recordação daquele mundo surreal já representava uma cena inimaginável. Só que agora, o fantasma voltou para assustar. E parece que é tudo verdade!
De fato, o que se pensava "triturado" o suficiente para "virar pó", pelo esforço de uma política econômica conduzida pelo êxito naquele confronto diante da inflação, revela-se agora sob risco iminente, depois de mais de 25 anos de absoluto controle. Os atuais equívocos políticos conseguiram restaurar uma mínima consistência inflacionária, suficiente para trazer de volta à economia uma dose real de instabilidade.
Os números surpreendem. De pronto, por derivarem de um contexto de comando associado à atual equipe econômica, onde a inflação sempre foi considerada um 'bicho de sete cabeças". Ela sempre viu como rigorosa a ortodoxia ideológica defendida como estratégia. Nessa circunstância, qualquer sintoma de "febre" nos preços, nada teria a ver com o que a equipe continua chamando de "desmantelo intervencionista" de tucanos e petistas heterodoxos.
Acontece que os fatos têm confirmado sinais preocupantes de uma retomada da escalada inflacionária. E tudo leva a crer que o Governo e a equipe econômica sequer sabem onde encontrar os "caça-fantasmas". Se perdidos estavam, creio que perdidos ainda continuam. Afinal, entre implantar o que defende (o laissezfairismo) e se submeter aos rompantes nacional-corporativistas que emanam do Planalto, o simples "não fazer nada" ou "não ter o que fazer" é o que se extrai dessa (des)sintonia.
Enquanto a assombração reaparece, a abrangência da política econômica assume de vez sua negligência no trato dos fatos episódicos e daí corrobora o que pode ser ainda pior. Neste caso, por também assumir uma incompetência indolente no trato das questões estruturais, mesmo que fizesse uso das suas imprecisões na leitura da realidade econômica brasileira. Mas, nem isso a equipe econômica consegue fazer. Por uma comodidade na subserviência do que seja a ação política e por um amadorismo latente na consciência do que seja a ação pública.
Num contexto desfavorável, a conta para os estratos inferiores da pirâmide social é alta e perversa. Se os números recentes da desigualdade e, por conseguinte, da pobreza já são proibitivos, o que há de se dizer com a retomada da inflação. Um efeito que se torna ainda mais cruel para os desprotegidos, quando se vislumbram os aumentos dos preços da energia e combustíveis, com consequências diretas e indiretas no custo de vida.
É duro crer que o moinho já foi reativado.