O perigo da inteligência artificial enquanto ferramenta da ignorância natural
Os riscos econômicos de uma tecnologia que desumaniza e gera a disseminação da desinformação
Cena algorítmica 1: a cada hora ou mais um celular qualquer toca e registra chamadas com números distintos, talvez na intenção de algum negócio que não interessa ao cliente.
Cena algorítmica 2: os arquivos de mídia, de textos a vídeos, invadem o mínimo que se tiver de veículo de rede social, geralmente, contaminados com a desinformação e também a falta de informação.
Apenas com base nas cenas acima, que ajudam a explicar a "neurose" de cidadãos, cada vez mais "internéticos", a sociedade termina por atingir uma outra situação de pandemia: a "narcose digital". Em vez do vírus biológico natural às pandemias clássicas, o mundo atual se coloca numa pandemia mental arriscada, onde o "vírus digital" acomete os cérebros desfavorecidos.
É daí que surge uma espécie de "memética", na medida em que se considerem os "memes" como unidades de informações - na maioria das vezes falsas - capazes de se multiplicarem nos cérebros propícios aos exercícios. De fato, para os que radicalizam em tudo e ainda se apegam às crenças e aos medos, tem-se aí o vetor resultante de posturas que se assumem como verdades absolutas, mesmo que cegas. Isso significa contar com a primazia da inteligência artificial, só que a serviço da ignorância natural. Vale tudo para se criar e disseminar a desinformação, além de se ignorar a falta da informação real.
Também vale realçar que não me insiro numa condição de ser um cidadão qualquer, que encontra algum grau de demérito nas iniciativas de inovações criativas e de conquistas tecnológicas. Nisso, é evidente que estou distante dos que não se conformam a virada do mundo.
Eis, então, um exemplo prático: o olhar sobre o que representaram os avanços na aviação. É algo imperioso, embora se reconheça os vieses que podem estar por trás dessa conquista. Afinal, se o avião aproxima distâncias e gera uma cadeia econômica de muitos negócios, há nele também um simbolismo contrário quando utilizado para detonar mísseis ou bombas. É sempre assim: a sociedade se submete aos riscos do não e do sim.
É por essas e outras, no sentido das inovações tecnológicas mais humanizadas, que percebo o que venha a ser uma genuína revolução. As experiências históricas bem registradas comprovam que não há sucesso revolucionário que decorra apenas de novas ferramentas. O poder real de uma esperada transformação está nos novos comportamentos. Das posturas individuais e do que delas se pode filtrar, ao se tomar como foco o conjunto de uma sociedade bem intencionada, atinge-se outro nível de postura, que pode alterar comportamentos, absolutamente capazes de exercitar algo novo e diferente. Por mais que a humanidade perceba que o bem e o mal estejam separados por uma linha tênue. Para ilustrar melhor, destaco que Albert Camus dizia que detinha nele "todos os sonhos do mundo". No entanto, ele tinha também a consciência de que "não se deveria esperar o juízo final, simplesmente, porque esse ato se realizaria diariamente".
Por tudo isso, não me parece difícil de se entender que o uso abusivo e distorcido das redes sociais seja campo fértil para abrigar os pensamentos mais extremos. Aliás, tal tese foi muito bem difundida no último encontro mundial sobre esse tema (festival de inovação South by Southwest - SXSW), ocorrido recentemente em Austin, nos EUA. Na ocasião do evento, com base em pesquisas e estudos comportamentais, houve quem apontasse para os que promovem as desinformações nas redes sociais, como uma rotina perigosa.
Nesse sentido, reforço toda disposição de quem estudou as principais plataformas de tecnologia da atualidade. Percebeu-se, então, que as mesmas têm-se consagrado como um novo tecido social, para o qual se vive e se pensa, algo capaz de exercer um poder perigoso sobre a capacidade de relevar ou não os fatos econômicos, políticos e sociais, que pautam o mundo de hoje.
Se as inovações tecnológicas promovidas pelo êxito da internet são uma realidade, há outras tantas que se materializam e se multiplicam como as duas cenas iniciais. É fato comum que cidadãos com opiniões extremas publiquem bem mais nas redes sociais do que os considerados moderados. Nesse comportamento, há uma impressão equivocada de que os propagadores e seus acólitos são maioria, muito embora tais sujeitos extremados apenas ocupam mais os meios que uma maioria silenciosa. É importante considerar que os quantitativos de postagens e abusos agressivos jamais devem servir de referência para o que se espera da essência de um mundo mais equilibrado.
Caberiam agora práticas legais de bom senso e realismo nesse universo virtual, sem leis e regras. É simplesmente inadmissivel que se prossiga com apoios a comportamentos algorítmicos, que estimulem bolhas que desinformem, não traduzam a realidade e prejudiquem as relações econômicas e sociais.
A desumanização por meio de avatares pode ser vista como uma agressão ambiental. Compromete o futuro dos humanos pela falta de um ambiente mais sustentável. Inverter isso seria um marco civilizatório. Assim espero.