Riqueza natural e pobreza vocacional: as desigualdades no nosso futebol (II)
A riqueza natural do nosso futebol parece atuar em duas direções favoráveis. Irei explicar.
A primeira, está na inegável capacidade brasileira de formar talentos para o campo de jogo. Uma virtude que une cronistas de pensamentos antagônicos, de Eduardo Galeano a Nelson Rodrigues. Deles, envoltos nas suas paixões, extraio uma comum e sublime percepção de que o futebol é como uma arte dançante. De dons, sons e tons distintos, onde a bola é tratada no gramado como uma obra: esportiva por natureza e artística por sentimento. Apesar da raridade de talentos, o bom atleta é dito patrimônio, um ativo contábil, sinônimo de riqueza.
A outra, está no indiscutível potencial de se atrair vultosos recursos financeiros. Esse atributo tão especial, que envolve a qualidade técnica dos "artistas da bola", representa um elemento decisório para alguns investimentos em marketing das empresas. É daí que as cifras começam a fazer do futebol um setor de enorme significado econômico.
Da junção desses pontos distintos, consegue-se entender a ordem de grandeza do negócio econômico que hoje o futebol projeta. Só que a percepção da natureza desse ofício, tem sido gradualmente desperdiçada. Basta um observador atento mirar para o que acontece no ambiente nacional. A força do que parece ser natural se entrega ao que representa ser vocacional. Ou seja, a sutileza de uma riqueza aparente se entrega a dureza de uma pobreza consequente. Também em duas direções.
Por um lado uma pobreza na expressão comportamental, dado o sentido de se ter construído um modelo de competições esportivas que privilegia a concentração. Haja coeficiente de Gini para medir o quanto o futebol brasileiro marcha para uma "europeização" quase ao estilo espanhol. Ou seja, um oligopólio de equipes que tem construído um "núcleo protagonista" cada vez mais distante da "órbita coadjuvante", absolutamente despreparada para o desafio das formas de competição e dos meios de sobrevivência.
Com isso, perde-se o que entendo como a motivação maior do torcedor: uma competitividade que lhe habilite a ser um potencial vencedor. Constrói-se uma vocação estúpida de que ser campeão é privilégio para poucos. Pior: ignora-se uma possibilidade ainda maior de mercado consumidor, haja vista que o modelo se satisfaz com o tamanho ditado por uma minoria que detém a parcela maior da renda. Bem a cara do Brasil.
A outra pobreza é estrutural e bem mais vocacionada, por conta de valores éticos e conceitos de gestão que só têm compromissos com o irracional e o amadorismo. É de se lamentar que a maioria dos clubes esteja em péssimas condições financeiras, à mercê de endividamentos públicos e privados, que resultam em danos profundos às suas imagens de gestores. Uma situação que termina por expor os clubes às dificuldades de captação de patrocínio e às inevitáveis perdas de ativos. Ou seja, óbices que não se afinam com o conceito de "compliance" hoje considerado pelas empresas, nem muito menos com a proposição de transformar os clubes em empresas.
Não contar com atletas talentosos e daí se ter jogos sem qualidade técnica, são situações que já revelam o porte do problema. Tolerar ainda os malfeitos de gestão só servem para dar o tom do fiasco pelo qual o futebol brasileiro tem-se organizado.
Enquanto isso, nessa visão estreita de fazer um futebol para poucos, a CBF consagra um modelo concentrador, calpitaliza-se com vultosas verbas de patrocínio e faz do seu pacto federativo, uma distribuição de recursos pautada pela subserviência. Uma velha e viciada política que se autossustenta num erro sem fim.
O mundo se move hoje em torno de eixos estruturantes, embasados na formação e na sustentabilidade. Valeria rever os conceitos na direcção do modelo de um "futebol mais": mais profissionalizado (na gestão), mais formador (na base) e mais justo (na distribuição dos recursos e na competitividade). Cabe torcida.