Logo Folha de Pernambuco
Um Ponto de vista do Marco Zero

Arte é vida. E vida é arte

O filme “Ainda Estou Aqui” é a anti-fake news. É a contra mentira. É luz

O filme “Ainda Estou Aqui” é a anti-fake news. É a contra mentira. É luzO filme “Ainda Estou Aqui” é a anti-fake news. É a contra mentira. É luz - Divulgação

Numa de suas cartas ao irmão, Théo, Vincent Van Gogh escreveu: “Tive uma semana de trabalho carregado e duro nos trigais em pleno sol: resultaram estudos de trigais, paisagens e um esboço de semeador” (Cartas a Théo, LPM, 1997, pg. 219). A arte em vida. Em produção. Vivida. Empregada. Doada.

A atriz Fernanda Torres foi indicada, junto com outras atrizes, para concorrer ao Oscar de melhor atriz deste ano. Por sua atuação no filme "Ainda Estou Aqui", dirigido por Walter Salles. Trabalho também indicado para concorrer ao prêmio de melhor filme. A obra retrata o desaparecimento do ex-deputado Rubens Paiva, sequestrado de sua casa no Rio de Janeiro. Em 1971, durante a ditadura. E nunca mais visto.

Vida em arte. Trata-se de levar ao público uma vida. Ocultada. De mostrar ao público uma tentativa de apagamento político. Fazendo um filme, uma obra de arte, que exalta a vida. Que acentua o humano. Que ressalta a luta de um homem por suas ideias. E que pagou com a vida por isso. Arte recuperando o sentido da vida.

Um filme é tarefa complexa. Abrange financiamento, atores, direção, produção, experiência, obstinação, gestão. E uma história. Uma história sonhada, inventada, produto da imaginação. De um Federico Fellini. Ou de um Luis Carlos Barreto. Pode ser também uma história factual. De fatos vividos. Sobre a história do país. História sobre a história dos homens. Recompondo vidas fragmentadas. Completando a história. Como o filme de Walter Salles.

Nesse tempo certo, de incertezas, onde incorrem pós-verdades, o filme "Ainda Estou Aqui” é a anti-fake news. É a contra mentira. É luz.

O filme de Walter Salles é uma obra de arte. Não só pelo trabalho dos atores. Da direção. Pela qualidade de sua construção. Obra de arte já reconhecida pelas indicações para premiação que recebeu. Mas, há um aspecto sutil que o recobre. Como uma pele. Uma voz. Que tentaram calar. E que, agora, volta. É arte em vida. Pela mão do talento.

Há filmes que confirmam a realidade. Como "A Lista de Schindler". E há filmes que decifram a verdade. Como "Ainda Estou Aqui".

Há filmes que são um choque. Como Oppenheimer. E há filmes que são uma certidão artística. Como "Ainda Estou Aqui". 

Há filmes que são memórias. Como "O Pianista". E há filmes que são sentença moral. Como "Ainda Estou Aqui".

Vida é arte. Na pintura de Cândido Portinari. Na música de Tom Jobim. Na escultura de Rodin. Na arquitetura de Niemeyer. Vida transformada em beleza. Em criação. Tocando a alma. E arte é vida. Resgatando a mágoa que ficou oculta pela força pura. Iluminando os escombros de uma escuridão que aterrorizava. Desfazendo o mistério fabricado pelo mal que estava no porão de Lúcifer. Reprovando a violência que não se quer mais no azul da civilidade. Reiterando a fraternidade que não seja só flâmula tricolor da Revolução de 1789.

A história recente do Brasil foi ofendida pela tentativa de impor narrativas. Cobertas pela cumplicidade e pela fraqueza ética de plataformas digitais. A distorção da realidade, inspirada em extremismos, é um risco para a sociedade. Só há uma forma de garantir a democracia: o funcionamento das instituições legais. O cumprimento da Constituição. O respeito à lei. E é o meio de evitar que a arte se obrigue a mostrar o lado doloroso de vidas perdidas.

Veja também

Newsletter