A trajetória das mulheres em ‘Game Of Thrones’
Desde seu retorno, a oitava e última temporada de “Game Of Thrones” vem sendo alvo de grandes reclamações e pequenos elogios por parte dos fãs. Cenas escuras, rede de transmissão caindo na TV e no streaming e, principalmente, comportamentos improváveis por parte dos personagens principais, são alguns dos motivos da consternação generalizada.
Há oito anos o público acompanha a trajetória daqueles que aspiram conquistar a liderança dos Sete Reinos para o nome de sua família. Foram 73 episódios de guerras sangrentas, reviravoltas, conspirações e mortes chocantes. Agora, com a maioria das batalhas concluídas, o próximo domingo chegará acompanhado da resposta para a pergunta que não quer calar: Quem sentará no Trono de Ferro?
É comum que, na vida real, os entusiastas da série baseada nos livros de George R. R. Martin se sintam incomodados com a injustiça e a violência que caem para os que não merecem. A impunidade reina, mas, ao mesmo tempo em que isso traz revolta, acaba se tornando um dos pontos mais atrativos da história. Não se espera que mocinhos ganhem sempre e vilões percam com frequência. Diversas vezes é difícil separar os bons dos maus.
Se tratando de uma série medieval, o patriarcado sempre esteve em evidência. Ainda assim, há um debate importante sobre a representatividade das mulheres e a brutalidade na qual foram submetidas na ficção. A coluna desta sexta-feira relembra um pouco do que Arya (Maisie Williams), Sansa (Sophie Turner) e Daenerys (Emilia Clarke) viveram em “Game Of Thrones”. Spoilers a seguir.
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Recapitulando 'Game Of Thrones'
Quando a oitava temporada de “GOT” estreou, trouxe o fato de Arya querer perder sua virgindade na noite anterior à guerra contra os Caminhantes Brancos. A cena em si não teve qualquer polêmica, mas a reação do público foi diversa e contraditória. Muitos foram nas redes sociais exclamando que a personagem é apenas uma criança. Bom, a trajetória de Arya é uma das mais difíceis da série. Ela assistiu à morte do pai de camarote. A partir daí, perdeu outros entes queridos, como sua mãe e seu irmão mais velho. Seguiu por caminhos tortuosos, tentando sobreviver e se adaptar, treinando e repetindo em sua cabeça a lista de pessoas que fizeram mal a sua família e que um dia iria matar.
Logo na segunda temporada Arya se torna uma assassina, mas, para alguns, “tudo bem se vingar de pessoas ruins”. Quando a garota Stark cresce e toma a decisão de praticar sexo consensual com o Gendry (rapaz que já nutria sentimentos por ela), é dita como “jovem demais para isso”. Portanto, neste caso, a problemática não está no ato sexual, mas sim com a misoginia acerca do desejo feminino impregnado na mente de quem assiste. Arya é uma mulher adulta que brande uma espada, mata e tem desejos.
Outra personagem que passou por muita coisa ruim foi sua irmã, Sansa Stark. Talvez ela tenha sido a que mais evoluiu dentro da série, passando por várias camadas na construção da sua personalidade. Como uma criança fútil e ingênua, acaba se apaixonando por Joffrey Lannister ao ponto de preferir apoiar ele à sua família. Muitas humilhações ocorreram depois que a família real fica em posse dela, sendo obrigada, por exemplo, a olhar a cabeça decepada do pai no muro do castelo. Quando finalmente consegue fugir, é quase assassinada pela tia descontrolada antes de ser vendida para o bastardo da casa Bolton, sendo estuprada por ele.
O que essa temporada se equivoca, porém, é em dar um passo para trás na evolução que a atual Lady de Winterfell carrega. Como administradora das questões da cidade de sua família, Sansa se tornou inteiramente independente e astuta. Mas em determinada cena da atual temporada, no diálogo entre ela e o Cão de Caça, ele afirma que se ela tivesse fugido em sua companhia não teria passado por tudo o que passou, fazendo alusão ao seu estupro pelas mãos de Ramsey. Sansa devolve afirmando que o abuso sexual foi essencial para ela ter se tornado a mulher forte e independente que é hoje.
Quando refletimos sobre a cena, é possível entender que a mensagem que os produtores queriam passar era de que as dificuldades da vida também podem servir de instrumento para o progresso, mas isso não significa dizer que abuso sexual é uma forma saudável de amadurecimento. Isso exclui a capacidade do crescimento individual, além de corroborar com a romantização da violência contra a mulher.
A mãe dos dragões, Daenerys, foi mais uma que passou por abusos sexuais quando mais jovem. Ao longo de oito temporadas, ela se tranformou de garota indefesa para rainha quebradora de correntes, conquistando o grande público. A questão com a personagem está na possibilidade de que a Targaryen fique louca igual ao pai, Aerys II, conhecido como Rei Louco. A Khaleesi vem colecionando muitas perdas: Seus dois dragões morreram, sua conselheira e melhor amiga, Missandei, também. O Jorah Mormont, seu grande amigo e escudeiro, também teve um fim trágico. Fora o fato da certeza de que, pelo menos em Westeros, ela não é amada pelo povo como Jon Snow é.
Com tudo que aconteceu é de se esperar que Dany fique abalada e acabe ficando mais impulsiva. Nada disso é motivo para considera-la clinicamente “louca”. Mesmo com a incoerência do roteiro em coloca-la queimando a população de Porto Real (ela prendeu dois dragões quando eles queimaram apenas uma criança, na quarta temporada), a torna uma completa inconsequente que precisa ser contida, mas nunca louca.
De fato, Daenerys também cometeu atitudes condenáveis, como a morte da família de Sam, mas isso só faz dela uma rainha hipócrita, já que quer livrar o povo do governo de reis tiranos, sendo uma tirana. Tyrion jogou fogo-vivo nos barcos de Stannis e foi chamado de inteligente. Ramsey era torturador, mas ficou lembrado como um vilão perverso. Outros personagens já tiveram atitudes reprováveis e não foram apontados como loucos: Mais uma vez o machismo naturalizado se fazendo presente.
Outras personagens icônicas, mas que não desenvolverei aqui para o texto não se alongar, merecem serem lembradas pelo exemplo de força, bravura e poder: Cersei Lannister, Brienne de Tarth, Ellaria Sand, Olenna Tyrell e Catelyn Stark são algumas delas.
Sabemos que “Game Of Thrones” é uma ficção e que, pela ambientação medieval, o feminismo não é facilmente desenvolvido. Porém, no universo criado por George R. R Martin, as mulheres foram protagonistas de suas próprias histórias, tornando-se parte essencial do todo. Seria justo para os fãs, para as mulheres e para as personagens, um desfecho digno para a maioria delas.
Não apressar uma temporada final com apenas seis episódios é difícil. A HBO e os produtores, D.B.Weiss e David Benioff, fizeram um trabalho incrível visualmente, mas parecem ter esquecido os diálogos inteligentes e a complexidade da trama em que “GOT” se sustentava em 2011, empobrecendo o roteiro. Nem tudo se resume em passeios românticos em dragões.
O último episódio de “Game of Thrones” vai ao ar no próximo domingo, dia 19, às 22h na HBO.
Fernando começou a assistir a séries de TV e streaming em 2009 e nunca mais parou. Atualmente ele acompanha mais de 200 produções e já assistiu mais de 6 mil episódios. A série mais assistida - a favorita - é 'Grey's Anatomy', à qual ele reassiste com qualquer pessoa que esteja disposta a começar uma maratona. Facebook: Uma série de Coisas. Instagram: @umaseriedecoisas. Twitter: @seriedecoisas_ Portal: Uma Série de Coisas.
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