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Uma Série de Coisas

"Adolescência", da Netflix, não quer te convencer de nada, e esse é seu maior acerto

Em quatro episódios, minissérie escancara como a internet molda adolescentes de forma imprevisível

Stephen Graham e Owen Cooper interpretam pai e filho na nova minissérie da NetflixStephen Graham e Owen Cooper interpretam pai e filho na nova minissérie da Netflix - Reprodução

A Netflix tem um histórico de apostar em séries sobre crimes e dilemas sociais, mas sua nova produção inglesa, “Adolescência”, se distancia das narrativas tradicionais. O que poderia ser mais uma história sobre um adolescente acusado de assassinato se transforma em algo muito maior: um estudo sobre masculinidade, influência digital e os buracos na educação emocional dos jovens de hoje. 

Tudo isso contado com uma técnica que obriga o espectador a respirar o mesmo ar dos personagens, quase que literalmente.  

Teatro diante das câmeras

O primeiro choque ao assistir “Adolescência” é sua escolha estética. Cada episódio foi filmado em um único plano sequência – ou seja, sem cortes aparentes –, o que significa que a câmera nunca "descansa". O espectador acompanha os acontecimentos sem interrupções, como se estivesse espiando um evento real, sem possibilidade de desviar o olhar.  

Isso exige um nível de precisão absurda de elenco e equipe. Para que cada cena fluísse sem erros, os atores ensaiaram exaustivamente, como em uma peça de teatro. O segundo episódio, por exemplo, envolveu mais de 300 adolescentes e 50 adultos se movimentando de forma coordenada, sem margem para improviso.  

Mas o que impressiona não é só a técnica, e sim o impacto emocional que essa escolha causa. Sem cortes para aliviar a tensão, a série cria uma sensação de claustrofobia, obrigando o público a sentir a mesma angústia dos personagens.  

O que se vê e o que se esconde

Owen Cooper, estreante no papel do menino Jamie, entrega uma atuação que desafia qualquer expectativa. Seu primeiro dia em um set de filmagem foi logo no episódio 3 – um dos momentos mais psicologicamente intensos da série. A forma como ele equilibra inocência, nervosismo e cinismo faz com que o espectador nunca tenha certeza se está diante de um adolescente ingênuo ou de alguém capaz de um ato irreversível.  

Stephen Graham, além de cocriador da minissérie, interpreta o pai de Jamie com uma profundidade emocionante. Seu personagem não é um homem cruel ou agressivo, mas carrega o peso de uma educação pautada no machismo e na violência – e, mesmo sem querer, passa essa herança ao filho. Ainda assim, a dor de ver um filho sob ameaça é tocante de assistir, um grande mérito do ator. 

A série não busca vilões óbvios, e sim questiona até que ponto os valores transmitidos dentro de casa moldam quem uma pessoa se torna.  

A verdade importa?  

Diferente do que se espera de histórias sobre crimes, “Adolescência” não foca na investigação, no julgamento ou na busca por uma verdade absoluta. A resposta para a pergunta "Jamie é culpado?" existe, mas a série não faz dela o ponto central. O que realmente importa é como esse caso reflete uma geração criada sob a influência da internet, absorvendo informações e comportamentos muitas vezes sem filtros.  

No fim, “Adolescência” é sobre os espaços em branco na formação de um adolescente: aquilo que não foi dito, aquilo que não foi ensinado, aquilo que foi aprendido sem que ninguém percebesse. A série não quer te dar uma resposta clara – e é exatamente isso que faz dela tão incômoda e impossível de ignorar.

*Fernando Martins é jornalista e grande entusiasta de produções televisivas. Criador do Uma Série de Coisas, escreve semanalmente neste espaço. Instagram: @umaseriedecoisas.

*A Folha de Pernambuco não se responsabiliza pelo conteúdo das colunas.

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