Baseado em fatos: como uma história deve ser contada?
Adaptações de crimes reais são constantemente reprovadas por quem viveu a realidade
Entre 1978 e 1991, Jeffrey Dahmer causou terror nos Estados Unidos matando 17 pessoas, seu modus operandi incluía abusos sexuais, canibalismo e necrofilia. Anna Sorokin fingiu ser Anna Delvey, uma falsa herdeira socialite, para dar golpes na elite americana até 2017, quando foi presa. Apesar de serem crimes bem diferentes, existe algo que os unem: ambos foram adaptados para TV e criticados por quem viveu essas histórias na vida real.
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A mais recente obra que narra os assassinatos cometidos por Jeffrey Dahmer é a minissérie “Dahmer: Um Canibal Americano”, da Netflix. Mesmo entre a lista dos mais vistos em vários países, Eric Isbell, primo de uma das vítimas (Errol Lindsey), disse nas redes sociais que rever algumas cenas foi como passar pelo trauma novamente, reprovando o conteúdo e julgando como desnecessário.
Já Rachel Williams, uma das amigas de Anna na época das fraudes, está processando a Netflix por difamação, pela minissérie “Inventando Anna”. Ela alega que não gostou da forma que foi representada. Se você não lembra, Williams é interpretada pela atriz Katie Lowes (Scandal).
Baseado ou inspirado não significa verdadeiro
Ainda que não exista diferença técnica entre “baseado” e “inspirado”, no cinema e na TV essas palavras são usadas para sinalizar que aquela ficção pega alguns elementos da vida real para criar uma narrativa (no caso de “inspirado”) ou traduzir o que realmente aconteceu (por isso, “baseado”). Mesmo no segundo método, devemos ter sempre em mente que essa afirmativa é ampla e genérica.
São muitas as variantes, o produtor, o estúdio, o roteirista e a intenção: a verdade nunca é soberana e, por isso, o que significa “verdade” para uns, pode não ser para outros. Se você busca assistir algo que chegue mais próximo do que realmente aconteceu, o gênero que mais se aproxima disso é o Documentário – inclusive, o true crime rende vários.
Outro ponto importante está no fato de que os crimes cometidos são de domínio público, ou seja, alguns documentos e processos jurídicos podem ser acessados facilmente. Logo, as produções das minisséries citas aqui (e tantas outras) não são obrigadas por lei a pedir permissão aos familiares dos crimes, aos criminosos ou quaisquer dos envolvidos.
Pode soar como frieza, e, por isso, é preciso deixar claro que, quando se opta por adaptar um crime real, é preferível pensar se aquela maneira de contar um fato ofende vítimas e seus familiares. Não é uma regra, tampouco será um impeditivo para que novas séries e filmes sejam laçados.
No mais, essas adaptações estão dentro da popularização vertiginosa do true crime. É estranho pensar que o pior dia da vida de alguém pode causar curiosidade e não há explicação para isso. O infotenimento (soma de “informação” e “entretenimento”) é a nova modinha. Não podemos negar, também, que contar esse tipo de história tem seus bônus, como, por exemplo, os casos sem solução que foram resolvidos com o lançamento do programa “Mistérios Sem Solução”, de 1987, e que ganhou uma nova versão pela Netflix em 2020.
*Fernando Martins é jornalista, escritor e grande entusiasta de produções televisivas. Criador do Uma Série de Coisas, escreve semanalmente neste espaço. Instagram: @umaseriedecoisas.
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