“Cidade de Deus: A Luta Não Para”: Um retrato de resistência, fé e violência nas favelas

Distribuída pela Max, história é ambientada 20 anos depois dos acontecimentos do filme de 2002

Alexandre Rodrigues retorna como Buscapé em série de "Cidade de Deus" - Divulgação

"Cidade de Deus: A Luta Não Para" chegou ao streaming da Max com profundidade dramática que se torna evidente desde o primeiro episódio. Com três episódios até o momento, e com novos episódios sendo lançados aos domingos, a série já tem uma segunda temporada confirmada, prometendo continuar a rica e complexa narrativa iniciada pelo filme de 2002.

Com produção assinada por Fernando Meirelles, a série se passa vinte anos após os eventos do filme original e foca no tumultuado cenário da comunidade da Cidade de Deus, no início dos anos 2000. A trama começa com a saída de Bradock (Tiago Martins) da prisão, que busca recuperar o controle do morro, agora nas mãos de Curió (Marcos Palmeira)

O que segue é uma explosão de tensão e violência, à medida que Bradock e Curió se enfrentam em um cenário repleto de corrupção policial, milícias e o caos gerado pelo tráfico de drogas. Tudo isso sob a cobertura jornalista do já conhecido Buscapé, que agora trabalha na imprensa.

Atuações e roteiro: A arte de reviver a Cidade de Deus

O elenco de "Cidade de Deus: A Luta Não Para" é uma força primordial na construção da trama. Tiago Martins, como Bradock, traz intensidade ao seu papel, evidenciando a brutalidade e a ambição do personagem. Marcos Palmeira, na pele de Curió, traz, em sua interpretação, uma gravidade que reflete seu papel de mediador em um cenário carregado de tensões. Alexandre Rodrigues, retornando como Buscapé, oferece uma performance rica em melancolia e sabedoria acumulada, conectando o passado com o presente de forma muito bem-vinda para o público que viu ou não o filme.

O roteiro é uma obra-prima de continuidade e inovação. Ele mantém a essência do filme original enquanto amplia a narrativa, explorando novos aspectos da vida na Cidade de Deus com uma profundidade que honra a obra de Paulo Lins e a complexidade do cenário social.

A narrativa de "Cidade de Deus: A Luta Não Para" é uma representação vívida da luta pela sobrevivência em um ambiente de constante conflito. A série constroi uma trama onde a tensão entre diferentes facções – traficantes, milicianos e policiais corruptos – cria uma atmosfera de instabilidade e medo que permeia a vida cotidiana dos moradores da comunidade.

Bradock, recém-saído da prisão, deseja retomar o controle do morro que uma vez comandou. Sua presença na favela reacende antigas rivalidades e provoca um ciclo de violência que afeta profundamente a vida dos moradores. Curió, que agora está no controle do lugar, enfrenta a ameaça de Bradock enquanto tenta manter uma relativa ordem e evitar uma guerra total. Esse conflito é um reflexo da luta pelo poder em um ambiente onde a lei e a ordem são frequentemente ausentes.

A presença de policiais corruptos adiciona uma camada extra de tensão. A série não hesita em expor a corrupção e a violência perpetradas pelas autoridades, que frequentemente agem em conluio com traficantes e milícias. Essa dinâmica torna a luta pela sobrevivência na favela ainda mais complexa para os moradores da Cidade de Deus, que são constantemente vítimas de abusos e negligência por parte do Estado.

Em meio a essa violência, a série destaca a resiliência da comunidade da Cidade de Deus. Os moradores não são meros espectadores, mas atores ativos na luta para proteger seu lar e suas famílias. A produção mostra como a comunidade se une diante do caos, com esforços coletivos para resistir às forças que ameaçam destruir suas vidas. A solidariedade e a força do coletivo são temas centrais, evidenciando a luta não apenas pela sobrevivência individual, mas pela preservação de uma identidade comunitária sem romantização.

Orixás e a cultura espiritual

Além da violência e do conflito, a série integra elementos espirituais e culturais através da representação dos orixás, figuras centrais nas religiões afro-brasileiras. Esta dimensão espiritual adiciona uma camada rica à narrativa e oferece uma reflexão profunda sobre a influência dos orixás na vida dos personagens.

O chefe da favela, Curió, é associado a Oxalá, o orixá da paz e da criação, pela sua guia toda branca que usa no pescoço. Sua tentativa de manter a ordem e evitar uma guerra na favela pode ser interpretada como uma manifestação da influência dessa divindade em seu caráter. A escolha de Oxalá simboliza a luta de Curió para preservar a paz em meio ao caos, refletindo o desejo de ordem e estabilidade em um ambiente tumultuado.

Bradock, com sua guia de Oxaguian azul e branca, representa a força guerreira e a determinação do orixá. Oxaguian é conhecido por sua bravura e por sua disposição para lutar em batalhas decisivas. A escolha de Oxaguian para Bradock é curiosa, uma vez que sua ambição e desejo de retomar o controle da favela, mesmo que isso signifique enfrentar uma guerra sangrenta, são primordiais de sua personalidade.

Os mais atentos devem reparar, também, no oficial Delano. Com sua guia de Xangô, ele reflete a busca por justiça e equilíbrio. Xangô, o orixá da justiça, é uma escolha apropriada para Delano, cujo papel é tentar trazer ordem e justiça em uma comunidade onde esses princípios frequentemente falham. A presença de Xangô no personagem simboliza o desejo de justiça em um cenário onde a corrupção é prevalente.

Por último, a mãe de Buscapé, associada a Oxum, representa a proteção maternal e a própria espiritualidade, já que ela pode ser considerada uma ialorixá. Sua prática de jogar búzios para ver as ameaças contra seu filho é uma expressão da influência de Oxum, que é conhecida por seu amor e cuidado. A presença de Oxum no personagem da mãe de Buscapé destaca a importância da proteção espiritual e da consulta ao divino em momentos de perigo e incerteza.

Na trilha sonora de "Cidade de Deus: A Luta Não Para", o ponto de Ogum, intitulado Ke kiki alá corô, surge como um momento carregado de simbolismo. Ogum, orixá guerreiro, é aquele que abre caminhos e protege os que enfrentam batalhas diárias. Ao soar na série, esse ponto não só intensifica a tensão do conflito armado, mas também resgata a ancestralidade e a resistência do povo preto e pobre da favela.

A escolha de incluir essa trilha não é casual; ela reflete a ligação profunda entre a espiritualidade afro-brasileira e as lutas vividas na periferia. Para muitas comunidades marginalizadas, a religião dos orixás — o candomblé e a umbanda — representa não apenas fé, mas também uma forma de identidade e resistência cultural. Em um ambiente onde a violência e a exclusão social são constantes, a religião do povo preto e pobre oferece força e resiliência, conectando essas pessoas a suas raízes e ancestrais, em um ciclo de proteção espiritual que, muitas vezes, é tudo o que resta diante de tanta adversidade.

Essa espiritualidade, presente na série por meio de detalhes como as guias dos personagens e a trilha sonora com o ponto de Ogum, reforça a ideia de que, mesmo em meio ao caos, há uma força maior que guia e protege os que lutam.

"Cidade de Deus: A Luta Não Para" pode ser considerado muito mais do que uma exploração da violência e do conflito. É uma reflexão sobre a vida na favela, a espiritualidade e a resiliência humana. Com uma narrativa poderosa e uma rica tapeçaria cultural, a série oferece uma visão completa e envolvente da vida na Cidade de Deus, destacando a luta pela sobrevivência e a força espiritual que sustenta a comunidade.

*Fernando Martins é jornalista e grande entusiasta de produções televisivas. Criador do Uma Série de Coisas, escreve semanalmente neste espaço. Instagram: @umaseriedecoisas.

*A Folha de Pernambuco não se responsabiliza pelo conteúdo das colunas.

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