Final de "Killing Eve" se afasta do subversivo e estaciona no convencional
No Brasil, série com Sandra Oh e Jodie Comer é exibida pela Globoplay
Muito se falou sobre "Killing Eve" (2018-2022) quando a série foi lançada quatro anos atrás. Em parte, por ser um papel dramático de destaque que Sandra Oh não mostrava, na TV, desde que deixou de interpretar Cristina Yang, em "Grey's Anatomy". Por outro lado, o enredo pedia duas mulheres fortes e com uma química singular, ponto para o casting ao completar a dupla com Jodie Comer (Doctor Foster). Os últimos episódios, no entanto, trouxeram um final que se afasta da essência da série, dividindo a opinião geral.
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"Killing Eve" traz, na raiz, duas mulheres que estão em lados opostos: Villanelle (Comer) é uma serial killer, contratada por poderosos para matar pessoas por toda a Europa. Ao mesmo tempo que é elegante, também é selvagem. O universo da personagem, tão bem criado por Luke Jennings no livro que antecede a série, “Codename Villanelle”, é profundo e bem desenvolvido.
Já Eve (Oh) é apresentada como uma funcionária de serviços de segurança que, embora muito inteligente, está frustrada no trabalho e sente que pode fazer muito mais - como caçar a mulher que seus chefes tanto procuram.
Ao longo das temporadas, enquanto o fascínio entre as duas aumentava, o público também era arrebatado pela dinâmica de gato e rato, somado a paisagens belíssimas, cenas sangrentas e roteiro que, até certo ponto, acompanhou a subversividade das páginas do livro fonte. Não à toa, ambas as atrizes foram bastante premiadas internacionalmente. Atenção, spoilers sobre o final de "Killing Eve" à frente.
Como tudo tem seu fim, "Killing Eve" anunciou que a quarta temporada seria a última. Oito episódios vieram para concluir a trama. Neste ponto, o envolvimento entre Eve e Villanelle se afasta de uma disputa entre o bem e o mal para um sentimento maior e sem explicação. Há o fascínio, mas agora ele está somado à admiração não dita. Ora, uma assassina não reconheceria as habilidades de sua algoz, nem vice-versa. Pior, ambas negariam até o fim que no que uma é boa, a outra também poderia ser.
Esse é o segredo da série, o proibido. Eve não poderia ser má, mas eventualmente seria. Villanelle não deveria ter sentimentos, mas sim, teria. Essa dualidade de sentimentos entre as duas também se transfere ao público. Queremos que elas fiquem juntas, mesmo tudo indo contra. Mesmo sendo errado, do ponto de vista da lei. A própria Sandra Oh revelou que a ideia era que Eve morresse.
A convenção de punir o 'estranho'
O final de “Killing Eve” não matou Eve, mas trouxe a morte de Villanelle. O último episódio acelerou o romance das protagonistas com o primeiro beijo e um tempo juntas na estrada, tudo caminhava para um final feliz, mas na cena final, Villanelle salva Eve de um tiroteio, mas é atingida no processo. Sendo o último ato, algumas pontas soltas continuaram sem respostas.
Com essa escolha, a produção acaba caindo no convencional. O documentário "Visible: Out on Television", na AppleTV+, faz um paralelo da trajetória de personagens LGBTQIA+ desde as primeiras aparições até os dias atuais. Na obra, vemos que existe uma cultura de punir e atribuir enredos pesados a esses personagens, como se inevitavelmente a única possibilidade para eles fossem a tragédia.
Esse é, inclusive, um dos grandes atrativos de "Heartstopper", da Netflix. Muitas pessoas, acostumadas com uma narrativa convencional, esperavam que algo de ruim acontecesse ao casal protagonista, sendo uma grata surpresa e um ponto de reflexão quando vemos um final feliz entre dois jovens gays.
Quando entrevistado pelo The Guardian, o autor do livro "Codinome Villanelle", Luke Jennings, também compartilhou esse pensamento punitório às personagens homossexuais: “Um enredo verdadeiramente subversivo teria desafiado o tropo que vê amantes do mesmo sexo em dramas de TV permitidos somente em relacionamentos mais fugazes antes que um deles seja morto", comentou.
"Killing Eve" tem três temporadas disponíveis no Globoplay. A quarta e última temporada ainda não foi lançada no catálogo da plataforma até a publicação desta coluna.
*Fernando Martins é jornalista, escritor e grande entusiasta de produções televisivas. Criador do Uma Série de Coisas, escreve semanalmente neste espaço. Instagram: @umaseriedecoisas.
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