O paladar une vínculos humanos no poético filme “O Sabor da Vida”
Filme de Trần Anh Hùng explora a intimidade e a emoção por meio da culinária
A experiência de mergulhar em um filme pode se tornar ainda mais intensa quando somos capazes de transcender da nossa realidade e nos transportar para o universo da narrativa, nos conectando profundamente com as emoções dos personagens. Em "O Sabor da Vida", o cineasta vietnamita Trần Anh Hùng, reconhecido com o prêmio de Melhor Direção em Cannes 2023, realiza essa proeza de maneira singular, imergindo o público na atmosfera vívida e sensorial de um casal de cozinheiros em seu ambiente natural, no ano de 1885.
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Estrelado pela vencedora do Oscar Juliette Binoche, e por Benoît Magimel, o filme nos presenteia com quase trinta minutos iniciais dedicados à preparação de um banquete meticuloso por Eugenie (Binoche), uma talentosa cozinheira, e seu patrão, o gourmet Dodin, com quem trabalha há duas décadas. Cada detalhe é minuciosamente retratado: o tilintar dos talheres, o borbulhar das panelas, o aroma das ervas frescas, legumes, molhos e carnes, tudo se desenrolando em uma coreografia delicada. O silêncio da cozinha é quebrado apenas pelos comandos precisos e diretos de Eugenie e Dodin para Pauline (Bonnie Chagneau-Ravoire), uma jovem aprendiz que observa atentamente e revela um grande potencial.
A imersão na atmosfera culinária é tão intensa que quase podemos sentir o aroma da comida pairando no ar. Nesse sentido, Trần Anh Hùng demonstra maestria ao capturar a essência sensorial da culinária e transmiti-la ao espectador. A parceria entre os personagens protagonistas não se limita apenas à cozinha, evoluindo para um relacionamento amoroso e circunstancial. Embora pareça um clichê, o sentimento entre Eugenie e Dodin é o ingrediente secreto que dá sabor aos pratos exuberantes que preparam.
A relação de Eugenie com a comida é profundamente visceral, refletindo o que muitos chefs sentem ao escolherem a profissão por amor à culinária. Para ela, a comida é uma forma de comunicação íntima e emotiva, uma maneira de se conectar com os outros através dos sabores e texturas que prepara com tanto cuidado.
Ao questionar Pauline sobre suas impressões ao provar uma omelete norueguesa – uma sobremesa que combina sorvete, bolo e merengue tostado – Eugenie revela a profundidade de sua conexão com a comida e sua capacidade de evocar emoções poderosas por meio de seus pratos. No entanto, apesar da parceria na cozinha, surge um dilema: enquanto Eugenie está satisfeita com as visitas íntimas e ocasionais de Dodin em seu quarto durante a noite, ele, por sua vez, quer oficializar a relação.
Ao contrário de outras obras que abordam o tema culinário, "O Sabor da Vida" não retrata chefs de cozinha competindo entre si. É uma ode ao afeto presente no preparo e na degustação dos alimentos, algo que se manifesta de forma vívida no vínculo entre o casal principal. A química entre os protagonistas não é meramente fictícia: Juliette Binoche e Benoît Magimel compartilham uma história real, tendo mantido um relacionamento por cinco anos fora das telas e sendo pais juntos.
Este é um filme que mescla sensualidade e refinamento, típico francês. Além da deslumbrante fotografia, "O Sabor da Vida" exibe uma delicadeza ao estabelecer conexões entre a culinária e a existência humana. Não é exagero afirmar isso. Na narrativa, tudo gira em torno da comida, sua história e seu impacto nas pessoas. Assim como os personagens exploram as quatro estações ao longo do filme, a narrativa evoca uma ampla gama de emoções, da doçura à amargura, refletindo a riqueza e a complexidade da vida humana.
*Fernando Martins é jornalista e grande entusiasta de produções televisivas. Criador do Uma Série de Coisas, escreve semanalmente neste espaço. Instagram: @umaseriedecoisas.
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