‘The Handmaid’s Tale’: Estamos caminhando para uma possível Gilead?
Atenção, esse texto possui spoilers da terceira temporada de "The Handmaid’s Tale".
Não é de hoje que “The Handmaid’s Tale”, série original Hulu e distribuída no Brasil pela Globoplay, é comparada com a realidade brasileira quando o assunto é descriminalização do aborto e questões de gênero. A adaptação, baseada na literatura de Margaret Atwood, se passa em um paralelo distópico onde fanáticos religiosos dominam a sociedade, passando a ser governada sob um regime militar e patriarcal que tem a bíblia como cartilha.
Na ficção, as mulheres são divididas por classe e cor. As esposas, por exemplo, vestem azul e comandam a casa, nunca os negócios. Para as aias, que tiveram seus corpos tomados pelo governo e servem apenas para reprodução, o vermelho. Mas apesar do privilégio de algumas, todas são proibidas de ler, escrever ou ter opinião própria, principalmente sobre política. Os LGBTQIA+ são considerados “traidores do gênero”. O castigo para qualquer violação da lei pode ir desde mutilação até a morte. Resumindo: na República de Gilead, o estupro é justificado pela lei.
É óbvio que, na vida real, não chegamos a tanto, mas a discussão em volta da descriminalização do aborto está sempre fazendo sombra para os eventos da série. No último domingo (16), a cidade fictícia na TV, Gilead, assim como o nome da série, chegaram aos assuntos mais comentados no Twitter, por causa do caso de uma criança que engravidou após ser abusada sexualmente.
A vítima, uma menina de 10 anos, foi estuprada pelo marido da tia por quatro anos. Mesmo com o aborto autorizado por lei, a equipe médica de um hospital no Espírito Santo se negou a fazer o procedimento. Ela precisou viajar para o Recife para ter seu direito garantido, mas tanto a menina quanto o médico responsável pelo processo foram recebidos aos gritos de “assassino” por manifestantes contra o aborto, os mesmos que levantam a bandeira pró-vida e que oraram no local.
É quando a vida real se aproxima novamente da ficção. Na terceira temporada de “The Handmaid’s Tale”, June (Elisabeth Moss) desenvolve um plano de fugir com todas as crianças de Gilead. Elas seriam ‘moldadas’ desde cedo para dar à luz e entender que não há espaço para ser outra coisa além do que for imposto. “Você será livre, poderá vestir o que quiser, ninguém te machucará por ler e nem te dirá o que pensar ou a quem amar ou no que acreditar, e não precisa ser esposa ou mãe se não quiser”, explica a protagonista para uma garotinha em cena que deixa qualquer um despedaçado. Se não ficou claro, eu repito: Crianças sendo ‘educadas’ para dar à luz.
Voltando para a vida real, três crianças ou adolescentes são abusados sexualmente por hora no Brasil, segundo o Ministério da Saúde. Por hora. A defesa de políticas públicas que combatam esse tipo de crime nunca foi tão necessária. O machismo e a violência de gênero fazem parte de uma cultura que vemos ser disseminada ao redor do mundo, dentro e fora das telas.
Legitimar as mulheres, investir na educação e no respeito ao corpo. Esse é o caminho que precisa ser construído para que deixemos de ver pessoas mais revoltadas com aborto do que com estupro.
*Fernando começou a assistir a séries de TV e streaming em 2009 e nunca mais parou. Atualmente ele já maratonou mais de 300 produções, totalizando aproximadamente 7 mil episódios. A série mais assistida - a favorita - é 'Grey's Anatomy', à qual ele reassiste com qualquer pessoa que esteja disposta a começar uma maratona. Acesse o Portal, Podcast e redes sociais do Uma Série de Coisas neste link.
*A Folha de Pernambuco não se responsabiliza pelo conteúdo das colunas.