Arthur Moreira Lima: vai-se um ativista da sensibilidade brasileira
Pianista carioca que morreu aos 84 anos deixou um legado de grandes gestos em defesa da cultura no país e belas gravações de música popular e erudita
Aos 41 anos, Arthur Moreira Lima concedeu uma entrevista ao repórter Allan Kozinn, do "New York Times". Era setembro de 1981, e o pianista carioca se apresentaria no Lincoln Center ao lado de seu amigo paulista, João Carlos Martins, intercalando os 24 prelúdios do "Cravo Bem Temperado", de Bach (tocados por Martins) e os 24 Prelúdios opus 28 de Chopin (executados por Lima).
Indagado sobre por que um pianista laureado em concursos internacionais importantíssimos, como o Chopin (Varsóvia-1965, quando ficou em segundo lugar) e o Tchaikovsky (Moscou, em terceiro), demorou tanto tempo para se apresentar em Nova York, Moreira Lima não mediu palavras.
“Nunca me esforcei muito pela minha carreira e, quanto mais velho fico, menos me preocupo com isso. Pelo que tenho visto no mundo do piano, as pessoas ficam muito angustiadas com suas carreiras e, quanto mais angustiadas ficam, pior tocam. Se você não der a mínima para a carreira, mas fizer o melhor que puder com a música, você vai tocar muito melhor. Se você tiver uma carreira mundial maravilhosa, tudo bem; se não tiver, tudo bem também, desde que saiba que toca bem. Há outras coisas na vida”.
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E de fato, houve outras coisas nesses 84 anos de vida, encerrados na última quinta em Florianópolis, após um câncer de intestino. Provavelmente, muitos dos brasileiros se lembrarão deste gênio através de outros de seus predicados: sua silhueta de longos cabelos penteados para trás era uma marca do musical "Toque de Classe", da TV Manchete. Exibido entre 1985 e 1986, o programa trazia um músico de casaca que perfilava ao lado do violoncelista Antonio Meneses (1957-2024) e do compositor Radamés Gnattali (1906-1998) com a mesma desenvoltura com que recebia o sambista de breque Moreira da Silva (1902-2000).
Outros talvez se lembrem do subsecretário de Cultura do Estado do Rio no primeiro governo de Leonel Brizola, sob as ordens do titular da pasta, o antropólogo Darcy Ribeiro (1922-1997). Também foi gestor da Sala Cecília Meireles e vice-presidente do Theatro Municipal do Rio. Na política, foi filiado ao PDT, e seu nacionalismo iluminista o tornou em um dos mais proeminentes apoiadores de Brizola em suas duas campanhas presidenciais (1989 e 1994). E foi, acima de tudo, um ardoroso tricolor, daqueles que os jornais entrevistavam para saber da opinião quando o time entrava em crise.
Nascido em 1940, Moreira Lima, que se sentou para estudar piano pela primeira vez aos seis anos, deu seu primeiro concerto em Belém do Pará aos 9, idade com que ganhou o prêmio de jovens concertistas da Sinfônica Brasileira. Estudou com Lúcia Branco, que foi professora de Tom Jobim, e Marguerite Long (a quem Ravel dedicou seu concerto em Sol Maior) e Jean Doyen em Paris, de 1960 a 1962. Não se adaptou, e seu desempenho em dois concursos (Long-Thibaud, na França, e Van Cliburn, nos EUA), não obtiveram grande destaque. Depois de tocar para o lendário pianista soviético nascido na atual Ucrânia, Emil Gilels, se convenceu a entrar em 1963 para o Conservatório Tchaikovsky, em Moscou, onde teve Rudolf Kehrer, nascido na atual Geórgia, como mestre.
Segundo o relato de seu amigo João Carlos Martins, a história do segundo lugar no Concurso Chopin de Varsóvia-1965, dá conta de que o brasileiro liderou o certame até a final, quando foi traído por um breve lapso. O primeiro lugar ficou com a jovem pianista argentina Martha Argerich, de enorme talento e carreira irretocável. Moreira Lima ainda perseguiu outros concursos, ficando em terceiro lugar tanto no de Leeds (1969, vencido pelo romeno Radu Lupu) quanto no Tchaikovsky, de Moscou, já aos 30 anos (1970, que teve dois empatados no primeiro lugar).
Talvez as frustrações lhe tenham aguçado o horror a ser comparado, levando-o às estradas menos percorridas. Em 1978, decidiu que queria deixar de ser estrangeiro, topando dar uma contribuição cultural a um país – anos mais tarde, diria que o Brasil precisava ser "culturalmente forte" para resistir à "influência da música estrangeira". Depois que voltou ao Brasil, farto de suas duas décadas vividas entre Paris, Moscou, Viena e Barcelona, nunca deixou de ser um ativista da sensibilidade brasileira.
Como músico divulgador, serviu essa utopia de diversas formas, quase sempre aproximando eruditos e populares. Em 1975, "Arthur Moreira Lima Interpreta Ernesto Nazareth", lançado pela Marcus Pereira Discos, foi um marco internacional do resgate do compositor carioca (1863-1934) autor de clássicos como "Brejeiro", "Odeon" e "Apanhei-te, Cavaquinho". Foi na quadra da Portela, sua escola de coração, que criou seu arranjo para "Carinhoso", de Pixinguinha, com o mesmo cuidado com que adornaria mais tarde o "Hino do Fluminense", de Lamartine Babo.
Sua faceta desbravadora se apresentou com o projeto "Um Piano pela Estrada", criado em 2003, lançou-se por quilômetros e quilômetros de rodovias num caminhão-teatro especial, pago do próprio bolso e adaptado para comportar um piano de cauda, um de parede e um camarim, a fim de tocar para cidadãos simples em praças públicas. Estava determinado a provar, tantas vezes quantas fossem necessárias, que o brasileiro não tem medo de música tonal, não importa qual seja a origem (de ambos).
Sua mulher, Margareth Garrett, e a filha Grasiela, ambas dentistas, o acompanhavam na estrada, ensinando os cuidados com a boca enquanto o marido e pai fazia a trilha sonora e contava histórias vividas em Moscou, em Viena ou nas andanças pela Amazônia e pelo São Francisco. Se suas gravações de Chopin pela Vanguard permanecem respeitadas pelo mundo, deve-se dizer que ele também se revelou um excelente intérprete do argentino Astor Piazzolla, que conheceu nos anos 1970 e que, como Lima, também operava na fronteira do clássico com o popular. O resultado foi um elogiadíssimo álbum lançado em 1997 pelo selo Olympia. Em 2014, continuou do seu jeito franco numa entrevista a um blog.
"Disciplinado, aliás, eu nunca fui. Se fosse, eu estudaria todo dia pela manhã, às 8, 9 horas. Mas não sou assim. Meu horário é ao contrário, acordo às duas da tarde, tomo café às três, e muitas vezes estudo pela madrugada."
Radicado com a mulher em Florianópolis, na praia do Santinho, as aparições no Rio foram se tornando menos frequentes. Em 2022, o portelense foi ao Sambódromo ver os desfiles do grupo especial pela última vez. Em 24 de setembro deste ano, recebeu o título de doutor Honoris Causa concedido pela UFRJ, numa cerimônia que acompanhou, já combalido, por videoconferência.