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CRÍTICA

Beyoncé desafia estereótipos e chega perto da obra-prima em ''Cowboy Carter''

Com canções entre o político e o pessoal e ousadas reinterpretações do tradional estilo americano, tido como branco e reacionário demais, a cantora consegue fazer disco com grande poder conceitual e faixas que brilham individualmente

Beyoncé lançou o disco country nesta sexta-feiraBeyoncé lançou o disco country nesta sexta-feira - Foto: Divulgação

Aos 42 anos de idade, mais da metade deles como aquela pessoa que o mundo inteiro conhece (e muita gente venera), Beyoncé Knowles pode fazer o que quiser, sem ter que dar explicações – inclusive, este “Cowboy Carter” que chegou ao mundo nesta sexta-feira (29).

Segundo álbum de uma série temática de três (o primeiro foi “Renaissance”, de 2022), ele foi aguardado como a reivindicação da artista negra e identificada com as pautas progressistas do seu inalienável direito de fazer um disco de country – música americana que, ao longo dos anos, veio ganhando a fama de branca e reacionária demais. Como esperado (nos termos de Beyoncé), este seu “Act II” é isso, mas bem mais que isso.

São 27 faixas (algumas delas, vinhetas) que somam 1h18 de duração, ao longo das quais Beyoncé transita pelo universo temático do country (Deus, armas, rodeio, a pureza do homem do campo, valores familiares, dramas conjugais), em canções que podem ser interpretadas tanto de forma geral (os descaminhos da América no Século XXI) quanto pessoal (a mal digerida traição do marido e empresário, Jay-Z).

Ou seja: há quem poderá ver paralelos com o “What’s going on” (álbum de 1971 no qual o negro Marvin Gaye exorcizou com rara beleza os terrores da Guerra do Vietnã) ou com “Back to black” (de 2006, o diário das encrencas amorosas de Amy Winehouse).

O que há de fato, em comum, entre “Cowboy Carter” e qualquer um desses dois discos mencionados é: o caráter marcadamente conceitual não impede que haja neles canções que sobrevivam muito bem individualmente. E o que de fato chama a atenção neste oitavo álbum solo de Beyoncé é que, nos últimos anos, raríssimos álbuns do mainstream da música pop tiveram uma sequência de abertura tão poderosa.

Temos, um atrás do outro, o épico “Ameriican Requiem”, um emocionante “Blackbird” (canção dos Beatles em que Paul McCartney se inspirou na luta das mulheres negras pelos direitos civis na América e que Bey dividiu com Tanner Adel e Brittney Spencer, Tiera Kennedy e Reyna Roberts, cantoras negras de country), o single “16 carriages” (sobre os tempos difíceis no começo da carreira), a folk “Protector” (com a filha Rumi) e a vinheta pop-barroca “My rose”. Coisa de tirar o fôlego e derramar lágrimas.

A vinheta radiofônica “Some Hour”, com o mais querido rebelde do country (Willie Nelson) dá início à parte mais irregular de “Cowboy Carter”, que vai do country-country de “Texas Hold’em” (com um pianinho house, maroto, ao fim que indica outros caminhos), ao contry-trap de “Tyrant” (dos versos “você tem uma dívida comigo, você o roubou de mim / antes eu te odiei, agora eu te invejo”, que incendeiam a imaginação) e o country-house de “Riiverdance” e “II hands to heaven” (esta mais evocativa, gospel).

Patrimônio feminino do country, a cantora Dolly Parton dá as suas bençãos a Beyoncé para que ela cante sua “Jolene”, música feita na perspectiva de uma mulher que se dirge a outra, com o qual o seu marido a traiu, e que é relida aqui na clave do empoderamento feminino. Ainda dentro dessa temática, a cantora extrai ótimas canções, como o hit em potencial “Bodyguard” (“não gosto do jeito que ela está olhando para você / é melhor alguém me segurar) e a flamenca “Daughter”, na qual a personagem tem seus instintos assassinos despertados pela possibilidade de infidelidade do parceiro.

Entre as faixas do miolo de “Cowboy Carter”, ainda há que se destacar “Ya ya” (uma colagem à la Beck, emulando rock-soul dos anos 1960, com citações a “Good Vibrations” dos Beach Boys e “These boots are mede for walking”, de Nancy Sinatra), “Alligator tears” (country com melodia sinuosa e sedutora) e o feliz dueto com Miley Cyrus, “II Most Wanted”. No meio disso tudo, tem até “Spaghetti”, um eficiente rap-rap com sample de funk carioca (do “Aquecimento das danadas", do DJ O Mandrake).

“Cowboy Carter” volta aos trilhos, solene, na gospel “Amen”, faixa de encerramento, que se liga a Ameriican Requiem” ao pedir misericórdia e reconhecer que “esta casa foi construída com sangue e osso / e desmoronou, sim, desmoronou”. No fim das contas, o novo álbum de Beyoncé pode não ser uma obra-prima como “What’s going on” ou “Back to black”, mas ninguém poderá dizer que faltou vontade de chegar lá – ou que vá faltar assunto ao beyoncéworld até o lançamanto de “Act III”.

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