"Brasil", música de abertura de "Vale Tudo", foi feita por Cazuza para filme; entenda
"Se a gente ouvir hoje, parece que ela foi composta mês passado", diz diretor artístico do remake sobre a canção gravada por Gal Costa
Para alguns, as modificações poderão ser imperceptíveis: um pouco mais de percussão de samba, um tanto mais de vigor na base musical...
O fato é que, tal qual na versão original de 1988, é a voz de Gal Costa (1945-2022) brilhando lá no tema de abertura do remake da novela “ Vale tudo”, que estreou segunda-feira (31) à noite na TV Globo.
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Quase 37 anos depois, os versos de Cazuza (1958-1990) — “Brasil/ qual é o teu negócio?/ o nome do teu sócio?/ confia em mim” — conservam sua ligação umbilical com a trama na qual o autor Gilberto Braga (1945-2021) fez a crucial pergunta: “Vale a pena ser honesto no Brasil?”
Diretor artístico da nova “Vale tudo”, Paulo Silvestrini observa que “se a gente ouvir hoje essa música, parece que ela foi composta mês passado”.
E conta que muitas discussões aconteceram, “mas a gente voltava ao tema original”. A autora do remake, Manuela Dias, resume a questão.
"A música de abertura foi um tema debatido à exaustão. Consideramos mudar a música, consideramos regravá-la, nos questionamos com quem poderíamos regravar... e fizemos tudo isso para manter a Gal em todo seu esplendor" diz.
"Foi uma decisão construída a muitas mãos e por muito tempo. Sinto que esse percurso de questionamentos fez com que escolhêssemos com absoluta convicção"
Curiosamente, nem Gal foi quem gravou a primeira versão da música, e tampouco ela foi feita de encomenda para “Vale tudo”.
A história de “Brasil” começa antes, com uma encomenda a Cazuza para a trilha do longa-metragem “Rádio Pirata” (1987), de Lael Rodrigues (1951-1989) — o mesmo diretor dos históricos filmes pop “Beth Balanço” (1984, cuja canção-tema o cantor compusera com o guitarrista Frejat e gravou com o Barão Vermelho) e “Rock Estrela” (1986).
Em depoimento coletado para o livro “Preciso dizer que te amo — Todas as letras do poeta”, sobre a obra de Cazuza, o baixista e produtor Nilo Romero (parceiro na canção junto com o saxofonista George Israel, então do Kid Abelha) diz que Lael Rodrigues explicara ao cantor que seu filme “abordaria escândalos financeiros e impunidade” e aquilo foi a centelha para que ele escrevesse a letra:
“O curioso dessa história é que eu e o George tínhamos combinado de fazer uma música com três acordes (...) Queríamos também juntar samba com rock, já que alguns artistas vinham propalando essa mistura aos quatro ventos e, na nossa opinião, ninguém ainda tinha efetivamente conseguido fazê-lo. Então saiu essa música”, conta Nilo.
Ainda no livro, Cazuza dá a sua visão:
“A letra de ‘Brasil’ é como um cara pobre, normal, vê, sem paternalismo, esse 1% da população que está se dando bem — e do qual faço parte. Sempre tive horror de política, mas tem coisas que você nem precisa saber, qualquer um vê.”
Adiante, o cantor revela que “Brasil” é uma música crítica, mas não tem nada a ver com uma fase política”: “Eu simplesmente passei o ano passado (no caso, 1987) do lado de dentro e, quando abri a janela, vi um país totalmente ridículo. O (então presidente José) Sarney, que era o não-diretas, virou o rei da democracia. O Brasil é um triste trópico.”
Mesmo estrelado pelos astros da TV Lídia Brondi (a Solange da “Vale tudo” original) e Jayme Periard, “Rádio Pirata” não fez o esperado sucesso para um filme de Lael Rodrigues.
“Brasil” só não passou em brancas nuvens porque Gal Costa resolveu incluí-la no repertório de “Lua de mel como o diabo gosta”, show de seu LP lançado no fim de 1987, que estreou em janeiro do ano seguinte.
Gilberto Braga arrepiado
E, aí, age o destino: já começando a escrever a história de “Vale tudo”, Gilberto Braga (um apreciador de música popular, que fazia questão de opinar ativamente sobre as trilhas de suas novelas) assistiu ao show de Gal e se encantou com “Brasil”.
“Fiquei arrepiado, porque tinha tudo a ver”, contou ele, em depoimento publicado no livro “Teletema” (2014), de Guilherme Bryan e Vincent Villari.
"“Brasil” tinha tudo para ficar esquecida, porque ela foi feita para um filme que não deu em nada. Até chegou a tocar no rádio com Cazuza, apesar de mal gravada, mas depois não aconteceu nada" recorda-se hoje Nilo Romero.
"Ela foi escolhida para a novela na sexta-feira, gravada no sábado, a Gal botou a voz no domingo, segunda-feira estreou. É aquela coisa: quando é para ser, é para ser"
No “Teletema”, Gal Costa admitiu: “Eu gravei como uma espécie de protesto, com essa intensidade.” No mesmo livro, Gilberto Braga revelou:
“Essa abertura foi uma audácia do Boni (José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, então diretor-geral da Globo). Foi tenso, houve pressão do departamento comercial para tirar, por causa do verso ‘o meu cartão de crédito é uma navalha’.”
Incluída mais tarde, na voz de Cazuza, em seu histórico LP “Ideologia” (1988), “Brasil” ajudou a impulsionar a vitoriosa trilha sonora de “Vale tudo”, que teve ainda um sucesso composto e cantado por ele: “Faz parte do meu show.”
Em entrevistas, o artista contou, sobre a letra, que “a droga que vem malhada não é só o pó (cocaína), mas o salário” — eram tempos de inflação galopante — e que “os problemas do Brasil parecem os mesmos desde o Descobrimento”:
“Renda concentrada, a maioria da população sem acesso a nada... A classe média paga o ônus de morar num país miserável.”
Em 24 de outubro de 1988, durante a temporada da turnê de “O tempo não para”, Cazuza enfim se juntou a Gal para interpretar “Brasil”, em performance que foi gravada e entrou no especial da TV Globo “Cazuza — uma prova de amor”, exibido no primeiro dia de 1989.