Buena Vista Social Club celebra 25 anos
Vinte e cinco anos depois, projeto passou de alternativo a central na ideia mais internacional que se faz da música cubana
Somente quando em Havana Eliades Ochoa soube que os planos haviam mudado. Em vez de um tal disco com músicos do Mali, impedidos de viajar por conta de problemas com visto, seria um projeto alternativo a que o violonista se dedicaria: reunir artistas de sua Cuba natal e gravar um álbum, um resgate do vasto cancioneiro do pequeno país.
Atenderam à convocação, entre outros, Compay Segundo, Omara Portuondo, Rubén González e Ibrahim Ferrer –fosse o Brasil, seria como juntar Cartola, Inezita Barroso, Garoto e Dominguinhos. Bastou uma semana de estúdio para registrar 14 faixas. "E assim começa o Buena Vista Social Club", conta Ochoa, por telefone.
Depois de 25 anos, o projeto passou de alternativo a central na ideia mais internacional que se faz da música cubana. Não se questiona, do novato ouvinte ao experiente aficionado, a relevância de "Buena Vista Social Club", lançado em 1997. As mais de 9 milhões de cópias vendidas à época e um Grammy Latino são acessórios para justificar uma re-edição comemorativa do álbum lançada em setembro último pela BMG.
A partir da trova e do "son", formas que se desdobraram em toda a cultura latino-americana, o disco faz um compilado musical da Cuba pré-revolução. O mosaico de canções inclui o "danzón" que dá nome ao grupo, "guajiras" primas da música caipira brasileira, salsas apimentadas como "El Cuarto de Tula" e então novidades como a mítica "Chan Chan".
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"Estava em Santiago de Cuba, por volta de 1986, 1987", lembra Ochoa, a voz e o violão que lideram a faixa que abre o disco. "Encontrei Compay Segundo e ele me deu uma fita K7 com muitas 'guarachas' que ele tinha gravado. Ouvi todas em casa, e eu já conhecia quase tudo, mas quando ouvi 'Chan Chan', pensei: que coisa estranha".
Não apenas o som grave daquele híbrido do violão inventado por Segundo, o "armónico", criava um ciclo hipnótico de tensão e alívio na música. A letra também soava peculiar. Era um causo, a história de um jovem, Chan Chan, que desce da montanha à praia e se vê boquiaberto ao presenciar a amada Juanita sacudindo o corpo todo enquanto peneira areia.
O autor sempre disse que a melodia da canção veio a ele em forma de sonho e a letra era fruto de uma história que escutava na infância. O arranjo dado por Ochoa completou a obra. Tão logo entraram em estúdio como Buena Vista, ficou decidido que essa seria a faixa de abertura do álbum.
Compay Segundo -literalmente, compadre segundo- faz a base já embutida de um ritmo ímpar-par característico -uma das claves cubanas-, enquanto Ochoa ornamenta a melodia reproduzida também no canto. Em "Chan Chan" desaguam duas Cubas: a urbana, praieira, e a rural, montanhosa.
Não por acaso Compay Segundo sempre era visto de chapéu panamá, de abas rasas, enquanto a marca registrada de seu camarada é um chapéu de camponês, de abas curvadas. Aquele se criou em Santiago de Cuba, enquanto este passou boa parte da vida no campo. "Eu nunca tiro o chapéu", conta Ochoa. "Se estou sem chapéu, parece que estou sem roupa".
Ochoa conta que suas primeiras idas à cidade foram a trabalho. Filho de uma família de lavradores apaixonados por música, o garoto conseguia alguns trocados nas ruas tocando violão ou "tres", instrumento cubano de três cordas. Assim ele também foi acumulando um repertório vasto. Fez duos, lançou-se com outros conjuntos, liderou o Buena Vista ao lado de Compay Segundo e segue como registro vivo da história musical do país.
"Tenho músicas que carrego comigo até hoje", diz o artista. "'Vicenta', por exemplo, eu toco desde os nove, dez anos". A canção é uma das novidades da reedição do disco, que tem 19 gravações inéditas. Projetos desse tipo costumam ser meros caça-níqueis das gravadoras, mas, nesse caso, o álbum duplo é oportunidade de ouvir boleros como "Descripción de un Sueño" em arranjo intimista na voz de Ochoa e Segundo –compadre morreu em 2003.
A versão mais parruda do lançamento vem com disco de vinil duplo e livro com imagens das sessões de estúdio, de março de 1996. As fotos datam de dois anos antes das filmagens do documentário que terminou por alçar o Buena Vista ao estrelato. Dirigido pelo alemão Wim Wenders e lançado em 1999, o filme acompanha o grupo em ensaios para uma apresentação no Carnegie Hall, em Nova York.
"Antes do documentário eu trabalhava muito, havia estado em vários lugares do Caribe, Nicarágua, União Soviética, República Dominicana", lembra Ochoa. "Mas quando chega o Buena Vista, a vida muda muito porque ele se encarrega de levar nossa música e nossa imagem pelo mundo. Antes, eu fazia 15 shows por ano, mas depois do Buena Vista, chegou a ser três vezes mais."
Como tudo que funciona, outros vieram na mesma esteira. Os membros do grupo gravaram mais algumas dezenas de discos entre solos, trios, sextetos e apresentações ao vivo. Novos conjuntos também surgiram. "Antes do Buena Vista, poucos artistas saíam de Cuba para o estrangeiro, mas depois que o grupo surgiu muitos outros começaram a fazer shows fora", diz Ochoa.
Tamanha popularidade esconde até hoje algumas dinâmicas do projeto. O entrevero com os músicos que viriam do Mali foi determinante para a história, mas, desde 1992, o executivo britânico Nick Gold e o violonista cubano Juan de Marcos González tinham interesse em reunir a velha-guarda de Cuba em estúdio. Em 1996, enfim, a ideia ganhou forma. González se encarregaria de reunir e dirigir artistas como Ochoa, e Gold financiaria a operação.
Em vez disso, porém, Gold também incubiu ao músico norte-americano Ry Cooder a direção do disco na ilha. Com o sucesso do projeto, Cooder tornou-se a cara das entrevistas, apresentações e aparições do grupo. González ganhou apenas um pequeno crédito na obra.
No filme de Wenders, é o gringo quem desbrava Havana sobre uma moto antiga. As cores vivas galvanizadas de dourado remontam a uma Cuba parada nos anos 1940, uma era pré-castrista de cassinos e bares em que o governo norte-americano promove mais o turismo que o embargo econômico que perdurou durante quase meio século.
Esse recorte, feito para satisfazer olhos e ouvidos ocidentais sedentos por uma dita autenticidade, também existe no álbum. O Buena Vista gravou o disco nas salas da EGREM, outrora o principal estúdio estatal da ilha. O registro lança mão de um som mais quente, como se o ouvinte estivesse em um pequeno bar na esplanada do Malecón -tom que segue valendo na reedição do álbum.
Longe de Havana, Ochoa hoje vive entre Santiago e Miami, onde está radicada a filha. Ano passado, ele voltou aos estúdios do EGREM para gravar com C. Tangana, mais novo nome do pop espanhol. "Me sinto feliz que um jovem artista tenha pensado em mim, isso é algo que não se esquece", diz o guajiro.
E quanto à música do Buena Vista, a música cubana, isso é algo que poderia ser esquecido, 'señor' Ochoa? "'Chico', a música cubana é como um elefante: vai devagar, mas abala tudo o que vem pela frente."