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trajetória

Carlos Lyra já teria seu nome na história simplesmente por ajudar a definir o que seria Bossa Nova

Sem deixar de fazer canções líricas, compôs também o Hino da UNE e fez a comédia musical "Pobre menina rica"; romantismo e política misturados para descrever o País

Carlos LyraCarlos Lyra - Foto: Reprodução/Internet

Carlos Lyra já teria seu nome na história simplesmente por ajudar a definir – ao lado de Tom Jobim e, como os dois, ninguém mais – o que seria Bossa Nova, sobretudo em sambas curtos, diretos, modernos e buliçosos como “Você e eu”, “Lobo bobo” e “Saudade fez um samba”, e canções líricas e não menos modernas como “Coisa mais linda” e “Se é tarde me perdoa”, todas escolhidas para cantar por João Gilberto, arranjadas por Tom, letradas por Vinicius de Moraes ou Ronaldo Bôscoli. Bossa Nova estabelecida, ponto. Primeira revolução.

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Mas tinha um país no meio do caminho. E um país nada bossa nova, leve e amoroso. Por isso, deixou por um tempo as manhãs da Ipanema onde vivia e compunha, e as noites da Copacabana onde tocava e ouvia música (sobretudo Johnny Alf, na boate do Plaza, sua maior influência), e tornou-se diretor musical do Teatro de Arena em São Paulo e engajou-se no Partido Comunista Brasileiro (“lá ninguém falava de Marx e Lênin, só de Brasil, cultura brasileira”).

De volta ao Rio, com Ferreira Gullar, Oduvaldo Vianna Filho e outros artistas fundou, como dissidência ainda mais rebelde do Arena, o Centro Popular de Cultura (CPC), da União Nacional do Estudantes. Lá, como diretor musical, tramou outra revolução: imbuído de buscar a música operária brasileira aproximou-se dos sambistas “de morro” Zé Kéti (com quem fez o “Samba da legalidade”), Cartola, Elton Medeiros e Nelson Cavaquinho; faria o mesmo com a “música camponesa”, trazendo João do Vale, promovendo um novo encontro do “povo” com as elites culturais, que seria fundamental para a canção e a cultura brasileiras daí para frente, e imediatamente influenciando movimentos como o bar Zicartola, o espetáculo “Opinião” e toda a geração seguinte de cantores, músicos e compositores.

Sem nunca deixar de fazer as mais líricas canções, como “Minha namorada” e “Primavera”, compôs também com Vinicius o Hino da UNE, e com Chico de Assis “O subdesenvolvido”, suíte satírica que seria a canção-símbolo desse momento. Com sua discípula Nara Leão e seu parceiro Vinicius – a ala de esquerda da bossa nova – faria a comédia musical “Pobre menina rica”, talvez sua obra-prima, romantismo e política misturados para descrever um país que precisava ser socialmente transformado.

A virada do dia 31 de março para 1º de abril de 1964 encontrou Carlos Lyra na sede da UNE na Praia do Flamengo. Ainda à noite viu as primeiras balas das milícias de extrema direita, que se aliava ao Golpe Militar em curso, ricocheteando nas paredes. De manhã, o prédio seria incendiado. Traumatizado por esses eventos que descreveria a vida inteira em seus shows, ele se exilou no México e nos Estados Unidos, valendo-se da fama conquistada depois que participou do famoso show da bossa nova no Carnneggie Hall, em 1962.

Com duas revoluções nas costas, a da bossa nova e o da politização da moderna canção brasileira que redundaria na MPB (ou segunda fase da bossa nova), Carlos Lyra passaria a vida divulgando esse imenso cancioneiro desenvolvidos entre 1956 e 1964, período que chamava de “as vacas gordas da cultura brasileira”. Sem a mesma divulgação, nunca parou de compor canções cada vez mais lindas com parceiros notáveis como Chico Buarque (“Essa passou”, lançada por Beth Carvalho), Ruy Guerra (“Entrudo”, por Elis Regina), Paulo César Pinheiro (“O bem da vida”, redescoberta por Monica Salmaso), Joyce Moreno (“E era Copacabana”).

Tinha uma utopia formal – a de que a Bossa Nova estava muito além dos sambas que a originaram, poderia abarcar todo e qualquer gênero – e de certa forma realizou-a em seu último trabalho de fôlego, 19 canções em parceria com Aldir Blanc para o musical “E era no tempo do rei”, cada uma de um gênero diferente, tudo bossa nova, todas políticas e de relevância social, a síntese que Carlos Lyra criou e sem a qual não existiriam Chico, Gil, Caetano, Milton e as gerações seguintes, num trabalho consciente que fez Vinicius de Moraes definir seu “parceirinho cem por cento” como aquele que “une a ação ao pensamento e ao sentimento”.

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